domingo, 16 de fevereiro de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira



A Revista à portuguesa

O teatro de revista ou a designada Revista à portuguesa, é um género teatral de gosto marcadamente popular. É constituído este género teatral por várias cenas de cariz cómico, satírico e de crítica política e social, com diversos números musicais. É caracterizado também por um certo tom Kitsch, com bailarinos vestidos de forma exuberante, além da forma própria de declamação do texto, algo estridente. No entanto este género de expressão teatral em Portugal, pode considerar-se remontar a Gil Vicente (1465 - 1536), em que a crítica e a sátira social estavam presentes em muitas das suas obras teatrais, nomeadamente nos Autos. Mas foi em 1715 que a primeira representação deste estilo de teatro de revista no mundo aconteceu, com a peça "A Cintura de Vénus", uma representação cómica e crítica nascida num pequeno teatro abarracado numa feira de Sainte-Laurent e Sain-Germain em Paris. Eram os chamados Teatros de Feira, desenvolvidos nas feiras populares de verão que aconteceram em Paris ao redor da Abadia de Saint-Germain-des-Prés da igreja de Saint Laurent, durante os séculos XVII e XVIII. Durante este período várias foram as Companhias teatrais deste género de expressão teatral que ali se formaram e desenvolveram este estilo de representação, que acabou por passar e ser adoptado por outras Companhias de outros teatros.
Em Portugal,  aquele que é considerado o primeiro espectáculo deste género teatral, sobe à cena no Theatro do Gymnasio em 11 de janeiro de 1851, sob o título programático de "Lisboa em 1850". Eram seus autores, no que se refere ao texto, Francisco Palha e Latino Coelho. Outro grande sucesso de revista seria em 1856 com "Fossilismo e Progresso" de Manuel Roussado. Mais tarde autores clássicos e românticos como Guerra Junqueiro (1850 - 1923) a Bernardo Santareno (1920 - 1980), escreveram obras teatrais do género revista. Vem no entanto de meados do século XIX, depois da estreia com sucesso de "Lisboa em 1850", a tradição do teatro de revista em Portugal e a própria designação deste género teatral, aponta desde logo a expressão de conteúdos a nível de texto, pois trata-se, na origem, de uma evocação, memorização ou descrição dos eventos sociais e políticos relevantes passados em determinada época. Daí, a designação tradicional, aplicada ainda em meados do século passado, de "Revista do ano". Em 1908 Sousa Bastos, ele próprio autor de Revistas, propõe uma definição deste género teatral, segundo este, era a classificação que se dá a certo género de peças em que o autor critica costumes dum país ou duma localidade, ou então faz passar à vista do espectador todos os principais acontecimentos do ano findo, tais como revolução, grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários, espectáculos, crimes, etc. Muitos outros teatros de Lisboa, praticamente todos, alguns já desaparecidos, foram palco deste tipo de representação desde o final do século XIX até meados do século XX, como exemplos: O Theatro da Rua dos Condes estreia a Revista "Zás Trás" em finais dos século XIX e em 1898 a Revista do ano, como ainda era designada "Agulhas e Alfinetes". O Theatro Avenida estreia a Revista "Prá Frente" em 1906 e mais tarde, em 1912 o grande êxito a Revista "CóCóRóCóCó". O Theatro Phantastico estreia uma das suas primeiras Revistas "Já te Pintei" em 1908. No Theatro Apollo estreou-se a primeira Revista à portuguesa após a instauração da Republica e considerada a primeira Revista verdadeiramente republicana, pelo seu espirito revolucionário, intitulada "Agulha em Palheiro". Esta Revista da autoria de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes e Lino Ferreira. Foi um êxito e estreou em 23 de fevereiro de 1911. Uma revista em 3 actos e 12 quadros, com música de Filipe Duarte e Carlos Calderón, interpretada entre outros actores da época por Nascimentos Fernandes, Lucinda do Carmo, Isaura, Amélia Pereira e João Silva. Em 1911 estreia uma das primeiras revistas, já pós Republica, intitulada "Arre Que é Burro", no Theatro Moderno e mais tarde em 1913, outro grande êxito "Os Gorostescos", uma Revista em dois actos. O Teatro Paraíso de Lisboa, na Rua da Palma, estreou a Revista "Cale-se" em 1912, um grande sucesso num teatro que também era animatógrafo. O Teatro da Trindade foi palco igualmente, de grandes êxitos da Revista à portuguesa, entre muitos deles destaque para dois grandes sucessos como "As Cartolinhas e os Adelaides "estreado em outubro de 1915 e "Feira da Luz" estreado em 1930. No Eden Teatro também se representaram muitos e grandes êxitos da Revista à portuguesa como o grande sucesso que foi a Revista "O Novo Mundo" em 1919 e mais tarde, no mesmo ano a Revista "Cabaz de Morangos". Também o Coliseu dos Recreios foi palco para numerosas Revistas à portuguesa de grande sucesso ao longo do século XX. A Revista à portuguesa, foi e continua a ser um género teatral que se generalizou por todos os teatros, grandes e pequenos da capital e também da província.



No entanto um local mítico, neste tipo de representação seria inaugurado em Lisboa, o Parque Mayer. Inaugurado a 15 de junho de 1922, o Parque Mayer resultou de uma partilha familiar do palacete Mayer e dos seus jardins. Este espaço exterior foi adquirido, em 1920, por Artur Brandão, primeiro promotor do Parque Mayer. Tendo sido comprado no ano seguinte por Luís Galhardo, jornalista, escritor e empresário que, com outros dez sócios, constituiu a Sociedade Avenida Parque, Lda. Neste espaço com muita luz, como ficou conhecido também, pois à época ainda poucos locais possuíam luz eléctrica, foram construídas casas de espectáculo que acabaram por se especializar no género de teatro de revista, associando-se a outras atracções de carácter lúdico, como restaurantes, teatros de fantochas (ou robertos), barracas de "tirinhos", fotógrafos e carrosséis, que juntavam muito público. Em 1930 efectuaram-se alguns melhoramentos no recinto, nomeadamente a construção do pórtico de entrada, com desenho do arquitecto Luís Cristino da Silva (1896 - 1976), impondo-se desde então o nome Parque Mayer como designação genérica. Com instalações precárias, o Parque Mayer foi-se tornando, aos poucos, um sítio carismático de diversão e boémia na cidade de Lisboa. Nos anos 30, começou por funcionar com divertimentos como barracas dos "tirinhos", carrinhos de choque, carrosséis de feira, "roleta diabólica", atracções várias, como o circo do El Dorado, e combates de boxe e luta-livre. Deste modo, o Parque Mayer rapidamente se tornou um recinto de convívio e de feira ao ar livre, onde não faltavam restaurantes, bares, cabarets, retiros e tascas, atraindo um público aficionado. Em 1932, por sugestão de Leitão de Barros, realizou-se aí o primeiro desfile de grupos representantes dos bairros lisboetas que, posteriormente, dará origem às Marchas Populares. Neste espaço, a que acorria um público ávido de diversão, foram sendo construídos vários teatros: o Teatro Maria Vitória (1922), o Teatro Variedades (1926), e o Teatro Capitólio (1931), sendo este, pelo traço do arquitecto Luís Cristino da Silva, um importante marco da arquitectura modernista em Portugal. Em 1956 edificou-se o último dos recintos, o Teatro ABC, que encerrou definitivamente em 1997. Outras casas de espectáculo tiveram vida mais efémera, como foi o caso do Teatro Recreio em 1937, que foi edificado por iniciativa do empresário Giuseppe Bastos e esteve apenas três anos em funcionamento. De referir que foi no dia 1 de julho de 1922, que subia o pano no Teatro Maria Vitória com a Revista "Lua Nova", da autoria de Ernesto Rodrigues, Henrique Roldão, Félix Bermudes e João Bastos, com números músicas assinados pelo maestro Raul Portela e direcção musical do maestro Alves Coelho, com Elisa Santos, Amélia Perry, Jorge Roldão e Joaquim de Oliveira. De muitos outros grandes sucessos representados no Teatro Maria Vitória, destaque para, ainda na década de 20, mais propriamente em 1926 da Revista "Foot-Ball". Aqui representaram-se e continuam a representar-se, alguns dos maiores sucessos da Revista à portuguesa em Portugal ao longo de décadas. Seguiu-se o Teatro Variedades, estreado com a revista "Pó de Arroz" em 8 de julho de 1926. Dos primeiros êxitos a estrear no Teatro Variedades foi a Revista à portuguesa "Chá da Parreirinha" em 1929.  O Cine-teatro Capitólio também exibiu teatro de revista e estreia-se com este estilo de teatro em 1938 com a revista "Pega-me ao Colo". Finalmente em 13 de janeiro de 1956 abre as portas O Teatro ABC com a revista "Haja Saúde!" de Frederico de Brito e Carlos Lopes, com Curado Ribeiro e Maria Domingas. Desde as décadas de 20 e nas décadas seguintes até aos anos 60, os sucessos de peças da Revista à portuguesa sucederam-se em catadupa nos teatros do Parque Mayer, havendo muitas peças em exibição ao mesmo tempo sem que existisse concorrência entre eles. Também muitas histórias de vida de actores e de gente do espectáculo, umas felizes outras infelizes, ali aconteceram. Nasceu neste espaço mítico da Revista à portuguesa por excelência, como que um mundo à parte. Muitos dos grandes temas da música ligeira portuguesa e do fado, nasceram em alguns destes grandes êxitos da Revista à portuguesa. Este fenómeno irá acontecer até ao final dos anos 60. De tão populares que se tornaram alguns  destes temas, muitos eram cantados pelo povo, nos teatros e circos ambulantes por todo o país, tornando-as nas chamadas Melodias de Sempre.



A história do Parque Mayer é indissociável do percurso político, social e cultural do país. No início dos anos 70 assistiu-se, neste espaço, a uma completa renovação de autores, artistas e da própria estrutura da Revista à portuguesa, como foi o caso, em 1972, de "É o fim da macacada", de Francisco Nicholson, Gonçalves Preto e Nicolau Breyner, no Teatro ABC. Após o 25 de abril, compreensivelmente, os autores apressaram-se a colocar em cena os quadros que tinham sido interditados anteriormente pela censura. O uso do palavrão passou a ser recorrente em muitos dos textos levados à cena, em muitos casos com alguns excessos despropositados, redundando mesmo em pura obscenidade. Luiz Francisco Rebello na sua obra refere que as revistas no Parque Mayer oscilavam, neste período, "entre uma difícil e duvidosa neutralidade e uma viragem radical à direita". O Parque Mayer está situado junto à Avenida da Liberdade, do lado ocidental, entre a Rua do Salitre e a Praça da Alegria, este recinto viveu o seu apogeu entre as décadas de 30 e de 70 do século XX, tendo, desde aí, entrado em declínio. Neste espaço estrearam-se e ganharam fama artistas do teatro e da canção, que souberam fidelizar um público entusiasta. Assim, alguns trabalhadores do Teatro ABC decidiram sair do Parque Mayer para formar, em 1974, uma cooperativa de teatro: o designado Teatro ÁDÓQUE. Este novo conceito de teatro, propunham-se fazer um teatro de Revista de tendências progressistas, e fixaram-se no Martim Moniz, num teatro desmontável que fora pertença da Companhia Rafael de Oliveira. Possuíam ainda um jornal, o Jornal ÁDÓQUE, onde eram divulgados os espectáculos produzidos por esta companhia. Na abertura deste novo conceito de teatro, a 23 de setembro de 1974, estreia a Revista à portuguesa "Pides na Grelha". De entre outros grandes sucessos deste teatro foi a Revista à portuguesa "A Grande Cegada" em 1976 e ainda "Taram Tam Tam não Enche Barriga", também de 1976. No Parque Mayer mantiveram-se os artistas com uma ideologia mais conservadora e o repertório ressentiu-se, por vezes, desse excessivo zelo. Muitos outros teatros e Companhias levaram à cena e continuam a fazê-lo, peças de teatro de Revista à portuguesa, umas mais elaboradas que outras, algumas até roçando o estilo do musical da Brodway, mas o espírito está lá. São exemplos, o encenador Felipe La Féria no Teatro Politeama. Também a Academia de Santo Amaro tem levado ao palco algumas Revistas à portuguesa, funcionando aliás como uma escola para novos talentos neste género de arte cénica. De referir que também no espaço Belém Clube se têm representado algumas peças de Revista à portuguesa de grande sucesso. Também grupos independentes como a Cartaz Produção de Espetáculos criada pelo actor Luís Aleluia em 1991, têm produzido algumas peças de Revista à portuguesa de sucesso como "Ó Zé Bate o Pé!" Nos anos áureos do Parque Mayer, os espectáculos tinham duas sessões durante a semana (incluindo ao sábado) e três aos domingos e feriados, empregando com isso centenas de pessoas entre artistas, costureiras, carpinteiros, técnicos de iluminação, e vários outros profissionais envolvidos na produção de espectáculos de revista. Mesmo com os quatro teatros a apresentarem espectáculos em simultâneo, as lotações esgotavam muitas vezes. Durante mais de um século, o teatro de revista ou a Revista à portuguesa, constitui uma janela de crítica política e social em que, curiosamente, ao longo dos tempos e das sucessivas situações e regimes, houve maior liberdade de espectáculo e de texto do que no teatro declamado. Talvez porque se pensasse que a Revista à portuguesa, e designadamente o Parque Mayer, não provocava crises políticas. No início do século XXI apenas o Teatro Maria Vitória apresentava alguma (esporádica) actividade com espectáculos de teatro de revista, por iniciativa do empresário e produtor Hélder Freire Costa. O Parque Mayer teve nos últimos tempos, altos e baixos, desde projectos para a sua recuperação, uns que ficaram pelo caminho, até outros que seguiram com sucesso para a frente. No entanto viu-se recentemente algo de positivo com a recuperação do Teatro Capitólio e para breve do Teatro Variedades a ser uma realidade no que respeita a recuperação. No meio de todas estas crises e altos e baixos do espaço do Parque Mayer, resistiu e resiste o mais antigo teatro deste espaço, o Teatro Maria Vitória, também chamado de "catedral" da Revista à portuguesa, que praticamente nunca parou a sua actividade, graças ao empenho e gosto pela arte do empresário Hélder Freire Costa, que comemorou 54 anos de carreira como empresário teatral, chamado por muitos e bem, um resistente.



E graças a essa resistência do empresário Hélder Freire Costa e de toda a sua magnifica equipa, como tem sido hábito, todos os anos, felizmente, fez-se uma vez mais história no Teatro Maria Vitória e no Parque Mayer, com a estreia de mais uma Revista à portuguesa. 



Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".