domingo, 23 de fevereiro de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira


Maria Victoria fadista e actriz

Maria Victoria era espanhola de origem, nascida na cidade de Málaga em Espanha, em 13 de março de 1891, vindo para Lisboa muito pequena, acompanhada pela mãe. De referir no entanto que existem controvérsias entre alguns biógrafos que afirmam que Maria Victoria terá nascido em 1888. Foi educada numa casa religiosa e, desde cedo revelou ser muito inteligente, aprendeu muito no convento, mas o seu espírito irrequieto levou-a a fugir desta instituição, não tendo por esse motivo completado a sua educação. Morena, de olhos negros, muito simpática, mas segundo consta e na opinião de certos biógrafos, entrou cedo na Vida, não sabendo aproveitar o grande amor que por ela sentia um belo rapaz que se cruzou na sua vida. De um sentimentalismo e sensualidade que se misturavam, mas prevalecendo nos princípios religiosos em que se iniciara. Maria Victoria de "espanhola" não conservava nada, antes pelo contrário, foi ao fado, essa canção tão portuguesa a que se entregou por completo, alcançando o maior êxito na sua tão curta vida. Poucos são os dados biográficos existentes e encontrados sobre a sua vida. Sabe-se que começou então a aparecer nas feiras da cidade de Lisboa e arredores, nas pandegas, nas noitadas, na estúrdia, rendida e embriagada pela vibração dulcíssima da guitarra, cantando o fado que ela adorava e que a celebrizou. Maria Victoria, optou, desde muito cedo pelo caminho da boémia, por uma vida desregrada, vivendo demasiadamente depressa. Era uma cantadeira de voz cavada e triste, e foi este estilo que a notabilizou. Adquirindo, além da popularidade e dos frenéticos aplausos que o público lhe dispensava - especialmente as senhoras, que por ela tinham uma extraordinária simpatia. Talvez esta mulher para muitas, fosse como que o símbolo de liberdade que desejavam. Um dia apareceu a cantar o fado na taberna Flor da Boémia, na Travessa da Espera nº 11, em pleno coração do Bairro Alto, em Lisboa, de que era dono um tal Joaquim Rato, um dos seus amores. Esta situação amorosa de Maria Victoria, daria origem a um drama, devido ao facto do filho de Joaquim Rato também se ter apaixonado pela cantadeira mas não sendo correspondido, originando um desgosto amoroso ao jovem que vivendo obcecado por um amor impossível, viria mais tarde também a morrer de tuberculose. E depois, durante a sua curta vida, foi-se criando à sua volta uma ronda de galãs, rapazes da época, mais ou menos boémios e estúrdios, como aliás é próprio da mocidade e essa ronda amorosa, tal como as sentinelas, deixavam render-se no quartel do seu coração, todos apaixonados pela graciosa morena de olhos negros, sonhadores, cheios de misticismo e de uma sentimentalidade sensual que quase a tornavam bonita, à força de tornar-se simpática. Maria Victoria foi amada por muitos e muitas, mas provavelmente nunca amou verdadeiramente ninguém, as suas únicas paixões na vida terão sido o fado, que tanto gostava de cantar e a ambição de vir ser aquilo que sonhava e acreditava ter capacidade de fazer, ser actriz. Tudo o resto assim como as pessoas que passaram na sua vida, foram apenas momentos e meros passatempos. Ao contrário do que alguns biógrafos afirmam, ela não se estreou como actriz no Teatro  Salão Phantástico, à Rua Jardim do Regedor, mas sim no Casino de Santos, na Rua das Janelas Verdes, onde o crítico do "Jornal Polichinelo" afirma tê-la visto estrear no ano de 1908. Foi neste ano de 1908,  marcado por grandes mudanças e transformações em Portugal, considerado como annus horribilis para a monarquia portuguesa com o Regicídio a 1 de fevereiro de 1908 que resultou na morte do rei D. Carlos I (1863 -1908) e do seu filho e herdeiro, o príncipe real D. Luís Filipe de Bragança (1887 - 1908), ocorrido no Terreiro do Paço em Lisboa. No meio de tantas mudanças e convulsões politicas, seria Maria Victoria a grande novidade a alegrar e a encantar o público lisboeta com a sua voz e figura.



Maria Victoria esteve depois no Teatro Salão Phantástico, na Rua do Condes, em Lisboa, onde à porta do qual, segundo relatos, por uma questão de ciúmes, se atirou à pancada a uma outra actriz, também especializada no fado, se bem que não fosse fadista como ela, nem alcançasse o nome a que podemos chamar glorioso que ela alcançou no teatro, posto que não chegasse a ser uma grande actriz. Era, todavia, artista, e conseguiu ter êxito no conceito do público, que nestas questões é juiz supremo. Será o então empresário teatral Luiz Galhardo (1874 - 1929), notável homem de teatro, quem em 1913 melhor a aproveitou, integrando-a no elenco feminino da sua Companhia Teatral, principalmente na Revista à Portuguesa "O 31", no Teatro Avenida. Revista esta da autoria de Luiz Galhardo, Pereira Coelho e  Alberto Barbosa, com músicas de Tomas Del Negro e Alves Coelho. Onde Maria Victoria desempenhou os papéis de "Estúrdia, Fado do 31", neste fado ela cantava:  

"Tenho sangue de Severa
Mas os nervos de uma artista…
O fogo de Júlia Mendes
A telhe de Âgela Pinto
Definir ai quem pudera!
A paixão de uma fadista"

Incluía ainda os números desta revista o "Guines" do célebre dueto "Arco de Santo André", "Alzira Fadista", etc. Seria o grande sucesso do "Fado 31" interpretado por Maria Victoria, cuja popularidade transpôs as fronteiras e chegou até Espanha. Muitos foram os êxitos para piano interpretados por Maria Victoria, como o "Fado 31" ou o "Fado do 31", entre outros, que foram publicados e editados em partituras pelas diversas casas da especialidade da época como a Sassetti & Cª. e a Valentim de Carvalho. O poeta e escritor teatral Pereira Coelho - Coronel José Maria Pereira Coelho (um dos autores da revista "O 31" e de outras peças) escreveu para ela, entre outras, esta quadra cheia de sentimento que ela cantava divinamente:

"P'ra se cantar bem o Fado
não é preciso talento.
- É preciso ser chorado
P'ró cantar com sentimento!"

Com o seu feitio irrequieto, a simpática actriz Maria Victoria, só estava bem onde não estava, e um dia, muito atacada pela tuberculose, doença que à época proliferava, recolhe ao Sanatório do Caramulo, de onde também fugiu, voltando ainda ao teatro, a sua grande paixão. Maria Victoria fez sucesso nos diversos palcos dos teatros lisboetas onde actuou, mesmo com a saúde débil, pois era grande esta sua paixão pelo teatro. Numa noite, quando seguia viagem de comboio para o Porto onde ia deliciar o público do Norte com os belos fados da Revista à Portuguesa "O 31", uma chuva húmida e fria infiltrando-se-lhe no organismo débil e dali ter contraído uma forte recaída de tuberculose pulmonar de que vem a falecer dias depois em sua casa na Rua Neves Piedade, nº 1 R/C em Lisboa a 30 de abril de 1915. Tinha 24 anos apenas. O jornal Diário de Notícias anunciou a morte da actriz, ocorrida a 30 de abril de 1915 numas parcas 25 linhas concedidas aos jovens talentos, omitindo a data de nascimento e a origem da doença que a vitimou. No entanto mais generoso que outros jornais, paginava, contudo, um pequeno retrato acompanhando o vago epitáfio: "Dispondo de uma pequena voz, Maria Victoria conseguiu uma certa celebridade pela graça e leveza que imprimia aos pequenos papéis que lhe distribuíam." Maria Victoria foi enterrada no cemitério de Benfica no dia seguinte à sua morte, ficando sepultada no coval 2678. Estiveram presentes no seu funeral alguns representantes do teatro onde a actriz tivera as suas apoteose: o Teatro Avenida. Estimada entre as colegas, Maria Victoria foi uma perda irreparável para algumas actrizes célebres da época e que estiveram presentes nas suas exéquias, como Zulmira Miranda, Adelaide Costa, Teresa Monteiro, Alice Nunes e Henriqueta Fonseca. Maria Victoria desapareceu cedo, antes do previsto apogeu da curta carreira teatral. Tempos depois, a determinada altura, o tal rapaz, do amor não correspondido, que nunca a pudera esquecer, foi comovidamente tratar da trasladação dos seus restos mortais para as catacumbas do cemitério. Como curiosidade, quando exumavam o cadáver, só aparecia um dos brincos de oiro. Levantaram-se suspeitas sobre o pessoal funcionários do cemitério, visto que o cadáver ficara ali toda a noite. O brinco apareceu embaraçado na grande massa dos negros cabelos da pobre Maria Victoria. Deixou ainda recordações a quem com ela lidou de forma mais próxima, o poeta Júlio Guimarães recordava-a saudosamente porque, tendo morada no mesmo prédio onde ela também morava, à Rua das Pretas, ia muitas vezes a casa dela, quando tinha apenas 12 anos de idade. Maria Victoria brincava muito com ele e um dia ofereceu-lhe um cigarro. Foi o primeiro que o Júlio Guimarães fumou, e nunca perdeu o vício desde então.



Maria Victoria foi considerada por Avelino de Sousa como "Cantatriz por excelência, o Povo elegeu-a rainha do Fado, desse Fado que fala a alma do Povo e que ela cantava tão bem." As suas memórias ficaram nas poucas fotos que a registaram, a mais famosa foto autografada pertença do arquivo fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa,  notícias de peças de teatro onde entrou, assim como alguns folhetos de coplas e em alguns registos em discos de gramofone de 78 rotações. Na cronologia mitológica do fado, Maria Victoria foi um nome sempre escrito entre o das fadistas Maria Severa (1820 - 1846) e Amália Rodrigues (1920 - 1999). Foi uma Diva do seu tempo, de vida curta e efémero mas por isso mesmo um mito do teatro e da canção em Portugal. Esteve 7 anos no teatro, mas esse curto espaço de tempo chegou para que granjeasse um nome e êxito que ainda perdura, não só na memória daqueles que à época a viram actuar e cantar como nas parcas memórias que ficaram. Maria Victoria será nome de teatro, do primeiro teatro no Parque Mayer, que em sua homenagem recebeu o seu nome em 1 de junho de 1922 quinze dias após a inauguração deste espaço na cidade de Lisboa. Era no início este teatro,  um modesto espaço provisório construído em madeira e sarapilheira, no entanto grandes êxitos ali aconteceram assim como nas décadas seguintes e com o passar do tempo beneficiando de obras, deixou de ser um modesto barracão passando a ser um espaço com comodidade. Na actualidade o Teatro Maria Vitória é o único a funcionar no recinto do Parque Mayer, que mereceu o título de "catedral da revista", mercê da persistência do seu empresário e produtor, desde 1975, Helder Freire Costa, que o tem mantido aberto e em funcionamento, por vezes com algumas dificuldades, mas sempre com espectáculos de grande qualidade, com artistas de grande mérito assim como excelentes autores, compositores, coreógrafos e cenógrafos. De recordar que em fevereiro de 1990 quando o Teatro Maria Vitória reabriu após o grande incêndio, a actriz e cantora Marina Mota recriou, em cena, na Revista à Portuguesa "Vitória, Vitória!", a figura de Maria Victoria. Representando o fantasma de Maria Victoria com a sua saia travada e o xaile de franjas, tal como ficou imortalizada na famosa foto autografada. Esta Revista à Portuguesa que celebrava a história do Parque Mayer e a história da fadista e actriz que deu nome ao mais antigo teatro deste mítico recinto lisboeta.



Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".