“Gosto de complicar a minha vida”, afirma Kalaf. Nos últimos anos, o músico tem estado particularmente ocupado a trabalhar à frente dos Buraka Som Sistema, mas, paralelamente, tem-se dedicado à arte que tem marcado todo o seu percurso: a escrita. Músico e poeta, Kalaf é também cronista no Público. Reuniu essas suas crónicas no livro O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço) e que o próprio define como “literalmente uma declaração de amor a Lisboa”. O livro serviu de inspiração ao concerto especial que preparou para o palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, que este ano lhe entregou a Carta Branca.
Porque é que gosta de complicar a sua vida? Vejamos: para este espectáculo convocou um baterista que vive em Cabo Verde, um guitarrista que reside em Angola e um contrabaixista que, apesar de viver em Portugal, tem sempre a agenda ocupada. Logo pela banda que lhe dará suporte é perceptível como se cruzam nacionalidades, culturas,experiências de vida díspares.
Partindo de músicas da sua Angola natal, como o semba e a kizomba, Kalaf percorrerá histórias sobre Lisboa, onde vive há 20 anos. Em Lisboa o músico encontrou uma identidade verdadeiramente multicultural. O que é que encontra nesta cidade que tanto tem que ver também com Angola? “Primeiro a língua e depois o número de pessoas que a praticam, que a falam, que a usam”, explica o músico. “Lisboa, ao contrário de Luanda, ou até do Rio de Janeiro, é o lugar onde toda esta realidade, trágica por um lado, mas enriquecedora por outro, está escancarada. Aqui é possível ver o confronto de várias realidades, dos angolanos mais espampanantes e extrovertidos, tal como os brasileiros, aos cabo-verdianos e guineenses mais
introvertidos, sem quererem chamar as atenções para si. No entanto, todos têm algo para dar com a sua riqueza e com as suas características. Se estivermos atentos e sensíveis, podemos retirar algo daqui muito bom.” É esta realidade multicultural e plural que o enriquece e que tem distinguido o seu percurso artístico. “Os Buraka não existiriam sem estes factores”, diz.
O grupo que saltou da Amadora para alguns dos maiores palcos do mundo é sem dúvida o seu projecto mais mediático. “Tenho muito orgulho naquilo que conseguimos construir e realizar com Buraka e sem dúvida que aquilo que eu aprendi no grupo, esta ideia de olhar para as coisas sem preconceitos e sem reservas, é algo que aplico no meu trabalho fora daquele universo. Isso é algo que tenho sempre de agradecer”, refere.
No entanto, não se espere deste concerto que Kalaf preparou para o CCB uma réplica do que tem feito com os Buraka Som Sistema. Até porque o seu percurso artístico está muito ligado ao spoken word. As histórias e reflexões reunidas no livro O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço) vão agora ganhar uma dimensão poética e, claro, musical, onde o semba e a kizomba são protagonistas . Até porque a escrita de Kalaf, mesmo quando as palavras não servem uma canção, tem uma sensibilidade musical. “A minha escrita é muito influenciada pela música. Escrevo estando atento à forma como as pessoas ouvem. É algo que ainda estou a tentar aperfeiçoar, mas quando estou a escrever tenho essa preocupação, a de encontrar um ritmo”, explica.
Existe também humor nas suas palavras e o título O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço) reflecte essa sensibilidade. “O humor é a única forma de chamarmos à terra todas as nossas questões. Sempre que perdemos o controlo das nossas vidas a única forma de voltar a reequilibrar tudo é com humor e quando escrevo essa é uma das minhas preocupações, a de ter capacidade de nos rirmos de nós próprios, não só como indivíduo, mas também como colectivo.”
A ideia de reflectir sobre o presente, sobre o que de mais vital está acontecer agora, seja a nível cultural ou social, é algo que tem enformado todo o percurso de Kalaf. Há 20 anos, quando se mudou para Lisboa, foi o movimento rap que mais o marcou, como o próprio admite. “Devo muito à geração do Rapública [primeira compilação de rap português, editada em 1994]. Para já, obrigou-me a olhar para a minha bagagem cultural, para o que trazia comigo e a pensar em questões de identidade. Quando se vive num país em que a maioria é negra e africana não se discute questões de quão africana é Lisboa, o quão Lisboa é convidativa e acolhedora para com essas minorias e também para com a sua própria história, que é uma história de mistura e mestiçagem bastante rica. O rap foi o primeiro lugar onde esses temas eram abordados e isso foi muito entusiasmante.”
Mistura é realmente uma palavra-chave para Kalaf. Antes ainda dos Buraka Som Sistema terem recriado o kuduro, o músico já tinha tido um outro projecto com Branko, também ele fundador dos Buraka, no qual Kalaf explorou com profundidade o spoken word ao lado de uma paleta musical electrónica. O grupo chamava-se 1 UIK Project e apresentaram o seu disco no Hot Clube Portugal, espaço onde o jazz é rei. No entanto, segundo Kalaf, nem sempre se tirou real partido da história mestiça que Lisboa tem. “Hoje olhamos para trás e vemos que se tivéssemos tido uma relação mais
estreita com África e com o Brasil teria sido muito melhor. A certa altura fechámos as nossas fronteiras e isso foi fatal na nossa relação com as Áfricas, porque criaram-se desconfianças e ressentimentos que ainda hoje continuamos a pagar. Já podíamos ter resolvido os complexos que se têm uns com os outros. A forma de resolver isso é conversando, dialogando.”