Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel
O Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, também conhecido como Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mua, situa-se no Cabo Espichel, já conhecido na antiguidade por Promontório Barbárico, Promontório Luminoso ou de Santa Maria ou ainda Cabo da Boa Esperança. Um local mítico e hostil do conselho de Sesimbra, onde, de acordo com a lenda, ocorreu um fenómeno de aparição/visão da Virgem Maria. São, no entanto, várias as versões e histórias ligadas a este culto, todas elas um tanto controversas, como muitas outras deste mesmo período, mas com um ponto comum, o aparecimento de uma imagem da Virgem naquele local. Alguns historiadores defendem que o culto Mariano no Santuário do Cabo Espichel terá tido início cerca de 1215, com a lenda da imagem perdida da nau do padre Dom Bartolomeu ou Hildebrando, pois existe a mesma versão com nomes diferentes dados a este religioso. Outros defendem que esta lenda se refere apenas a Nossa Senhora da Arrábida. Se a lenda fosse a mesma, a imagem teria desaparecido durante 195 anos, reaparecendo em 1410, quando se deu início à lenda do "Homem de Alcabideche". Segundo Cláudio da Conceição, reza a lenda que, no século XIV, por volta de 1410, terá sido encontrada naquela zona do Cabo Espichel, junto á praia dos Lagosteiros uma imagem de Nossa Senhora por um casal de dois pescadores idosos, ela da Caparica e ele de Alcabideche que ali se deslocavam para cortar lenha. Relataram ainda terem ambos visto uma grande luz que brilhava sobre o Cabo e num sonho o idoso ao chegar perto do local terá tido uma visão/aparição da imagem de Nossa Senhora a ser carregada por uma mula branca a subir a falésia, marcando o trilho com os seus cascos. Segundo narra Frei Agostinho de Santa Maria (1532 ou 1538 – 1597): "Sonhou um venturoso homem de Alquebideche, que naquele Promontório (…) via, e admirava uma luz remota (…)»; e então diz «como Moisés, quando o Senhor lhe apareceu em Madian no meio da Sarça, que ardia sem se consumir: é necessário que eu vá reconhecer esta grande maravilha que estou vendo.» Colocando-se a caminho, e sendo a viagem difícil, «da calma procura alivio ao cansado corpo; e aqui se diz tivera o encontro com a devota mulher de Caparica, a qual sabendo também do maravilhoso caso, com indústria apressára os passos, deixando o Saloio entregue ao sono, e chegando primeiro ao sitio do Cabo, ficára para sempre Caparica com a preferência nos Cultos". Finalmente no Cabo Espichel, o homem de Alcabideche: "vê acordado, o que gozou dormindo: vê a Luz mais pura, goza da claridade mais perfeita. Sim, vê a Prodigiosa Imagem da Mãe de Deus, a quem já adorava a venturosa Caparicana. Logo o saloio «se prostra junto a ela reverente (…); e conhecendo ser vontade de Deus, que se desse Culto a sua Santíssima Mãe naquele lugar retirado, na solidão do deserto assim o prometem, e se tem praticado até ao presente (…)." Paralelamente a esta história, uma outra lenda claramente mítica, que nos dá conta do milagroso aparecimento da Senhora da Pedra de Mua. Frei Agostinho de Santa Maria (17, Tomo II, p. 474) narra-a ainda com pormenores: "(…) afirmam que a Senhora aparecera na praia que lhe fica embaixo da mesma penha, onde se edificou a Ermidinha, e que aparecera sobre sua jumentinha, e que esta subira pela rocha acima, e que ao subir ia firmando as mãos, e os pés na mesma rocha, deixando impressos nela os vestígios das mãos, e pés (…)". "(...)de ser isto assim o afirmava a tradição dos que viram estes mesmos sinais, que hoje já tem gastado, e consumido o tempo (...) e fundou no lugar aonde a Senhora parou, naquela liteirinha vivente que a levava (...)".
Refira-se ser Frei Agostinho de Santa Maria o único autor antigo a mencionar esta tradição. No entanto, a lenda surge-nos igualmente contada, com alterações nos azulejos historiados da Ermida da Memória, onde se pode ler, em autêntica banda desenhada setecentista, que foram os dois anciãos de Alcabideche e da Caparica quem presenciou o milagre da subida de Nossa Senhora pela arriba, montada na sua mula e transportando o menino ao colo. Estes azulejos relatam, assim, uma versão composta das duas tradições e lendas, a da subida da Virgem e das pegadas da mula, narrada por Frei Agostinho de Santa Maria, e a dos dois anciãos que descobriram a imagem, narrada por Cláudio da Conceição. Desta lenda surgiu o verso popular:
O velho de Alcabideche
E a velha da Caparica
Foram à Rocha do Cabo,
Acharam prenda tão rica!
A partir destas duas lendas nasceu o culto da Nossa Senhora do Cabo ou Senhora da Pedra Mua e a zona tornou-se num local de romaria. Consta da carta régia de 14 de Abril de 1366 da Chancelaria de D. Pedro I (1320 - 1367), ano em que D. João I fez a doação dos terrenos do sítio do Cabo Espichel ao Santo Condestável Nuno Álvares Pereira, para o culto puder dispor à-vontade desse espaço cuja manutenção espiritual ficou a cargo da Ordem do Carmo, por doação de D. Nuno ao seu Convento em Lisboa através D. Diogo de Vasconcelos, cavaleiro comendador de Sesimbra. Ainda nesse ano, o Santo Condestável mandou construir a pequena ermida em memória de Santa Maria da Pedra de Mua, legendariamente aparecida aí montada numa mula, mas que também poderá ser corruptela fonética do árabe mulah. Assim na falésia, onde alegadamente estaria o suposto trilho de pegadas, foi edificada no século XIV uma Ermida da Memória, com o intuito de guardar a imagem encontrada da Nossa Senhora ou a Lenda da Senhora da Pedra Mua. Desse primitivo santuário referido pelas Visitações da Ordem de Santiago, nada resta. Esta construção posterior, já referida, que remonta, muito provavelmente, ao final do século XV, terá sido implantada no local onde foi descoberta a imagem, e constitui o elemento mais antigo deste conjunto arquitectónico. O edifício desta ermida é de planta quadrangular e paredes pouco elevadas, o templo é coroado por uma invulgar cúpula contracurvada, em forma de bolbo, terminada por um pináculo boleado (mas cuja bola terminal desapareceu nos anos 90 do século passado). É rodeada esta edificação por um pequeno miradouro com adro, de onde se avista uma extraordinária panorâmica alargada, tem o interior revestido até meia altura por silhares de azulejos setecentistas azuis e brancos, dos inícios da segunda metade do século XVIII, representando a descoberta da imagem de Nossa Senhora do Cabo, a construção da própria Ermida, da Igreja e das Hospedarias e os "Círios" ou romarias da época, sendo de grande interesse a iconografia. Refira-se que estas ilustrações representadas nestes painéis de azulejos são os únicos registos conhecidos das lendas e história deste santuário. A este Santuário da Senhora do Cabo afluíram desde a Idade Média vários e numerosos grupos de "Círios" (grandes grupos de peregrinos, organizados em romarias colectivas). Existem romarias documentadas ao Cabo Espichel no século XIV. Na Carta Régia do rei D. Pedro I, de 12 Abril de 1366, refere os romeiros de Azeitão que vão a Santa Maria do Cabo. Estes romeiros organizavam-se em "Giros" anuais para festejar Nossa Senhora, muito antes da instituição formal destes. Desta forma surgiu o chamado Giro do Círio de Nossa Senhora da Pedra Mua ou Giro Saloio. Foi designado e oficializado em 1430 o "Círio Saloio" (iniciado em 1430 e constituído por 30 freguesias da zona a norte de Lisboa, reduzidas a 26 no século XVIII), vinte e um anos após o aparecimento da imagem de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Do "Giro" do "Círio Saloio" faziam parte cerca de 30 freguesias dos actuais concelhos de Lisboa, Sintra, Cascais, Mafra, Loures, Odivelas e Oeiras, combinaram organizar-se entre si, instituindo um "Giro" anual: cada uma delas iria, anualmente e à vez, prestar culto ao Santuário do Cabo Espichel. Correndo grandes perigos, os romeiros vindos do lado de Lisboa, Oeiras, Paço d'Arcos e outros locais, chegavam até a este santuário em canoas e botes que aportavam na praia dos Lagosteiros. Esta romaria também foi adoptada pela corte portuguesa, inclusive ficando conhecido como "Círio Real". Assim, apenas de 30 em 30 anos a mesma freguesia voltava a organizar a festa. Oito freguesias organizavam o seu próprio "Círio", não fazendo parte do Giro: Almada, no domingo da Trindade, Azeitão e Sesimbra no 1º domingo de Setembro, Palmela em 15 de Agosto, Seixal e Arrentela na 2ª oitava do Espírito Santo e Lisboa no 3º domingo após o Espírito Santo. Em 15 de Maio de 1585 foi aprovada a Procissão pelo Cardeal Arcebispo de Lisboa, no entanto a Confraria de Nossa Senhora do Cabo só será instituída formalmente em 1672. Como esta primitiva Ermida da Memória se revelasse demasiado exígua para os romeiros que a ela acorriam, em 1490, dá-se início à construção de uma primeira igreja na vasta área de campo aberto do promontório, da qual não existem hoje quaisquer vestígios. Segundo registos da época pode ler-se: "Em 1490 se lançou a primeira pedra n'este ediflcio, á custa dos habitantes do termo de Lisboa, e das esmolas e offertas dos fieis." Dadas as condições geográficas deste local, é construído em 1430 o primeiro Farol do Cabo Espichel, mas a torre actual foi apenas inaugurada em 1790. Os edifícios de apoio ao farol foram aumentados para os lados por volta de 1900. No ano de 1671, a poucos metros dos edifícios do Santuário do Cabo Espichel, foi edificado o Forte de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Poucos são já os vestígios existentes desta construção militar, mas ainda é possível perceber um pouco da sua tipologia. Uma filosofia idêntica à da Fortaleza de Santiago, em Sesimbra, uma fachada austera, virada para o mar e outra mais civil virada para terra. Tudo isto acontece numa altura em que a Coroa Portuguesa tinha necessidade de estreitar laços com a Igreja, a intenção de proteger peregrinos e frades do Santuário do Cabo Espichel dos perigos externos vindos pelo mar, como pirataria e das possíveis invasões espanholas, justificando por isso a existência de uma fortificação militar neste local. A partir do culto a Nossa Senhora do Cabo e da quatrocentista Ermida da Memória, tal como da primitiva igreja construída no local, no século XVIII, serão os reis D. Pedro II (1648 - 1706), D. João V (1689 - 1750) e D. José I (1714 - 1777), a edificar um santuário que perdurou ao culto até à transição para o século XX. Desde o século XVIII, o "Círio Saloio" é constituído por 26 freguesias: S. Vicente de Alcabideche, S. Romão de Carnaxide, S. Julião do Tojal, S. Pedro de Penaferrim, Nª Srª da Misericórdia de Belas, Stª Maria de Lourdes, S. Lourenço de Carnide, S. Pedro de Barcarena, S. Pedro de Lousa, Stº Antão do Tojal, Nª Srª da Purificação de Oeiras, Nª Srª do Amparo de Benfica, S. Domingos de Rana, S. João das Lampas, Nª Srª da Purificação de Montelavar, Nª Srª de Belém de Rio de Mouro, Nª Srª da Ajuda de Belém, Ascensão e Ressurreição de Cascais, Santíssimo Nome de Jesus de Odivelas, S. Martinho de Sintra, S. Pedro de Almargem do Bispo, Stº Estêvão das Galés, Nª Srª da Conceição da Igreja Nova, S. João Degolado da Terrugem, S. Saturnino de Fanhões, Stª Maria e S. Miguel de Sintra. Alguns vestígios arqueológicos como fragmentos de cerâmica de utensílios domésticos dos séculos XVII e XVIII, encontrados, provam uma grande afluência e estadias prolongadas desses peregrinos e romeiros neste local de grande fé e culto.
O conjunto do santuário congrega a igreja, construída por ordem do rei D. Pedro II entre 1701 e 1707, num projecto em estilo arquitectónico típico português denominado de Chão ou Maneirista, caracterizado pelas formas austeras, robustas e lisas, com influências de estilo Barroco. Num registo da época pode ler-se: "Tendo os temporaes damnificado muito, a casa do infantado, padroeira da egreja, desde a extincçâo do ducado d'Aveiro mandou demolir a antiga ermida, e construir o grandioso templo (...)." Esta construção pode ser atribuída pelo seu desenho ao arquitecto João Antunes (1642 – 1712), na época arquitecto da Casa do Infantado. A construção deste edifício foi iniciada em 1701 e é sagrada em 1707, está situada de costas para o mar. A fachada da igreja apresenta-se em estilo Barroco, (estilo adaptado com as obras de melhoramentos do século XVIII), com uma cimalha que abriga um nicho com a imagem de Nossa Senhora do Cabo. Frontão triangular ornamentado com dois pares de volutas e uma porta pouco ornamentada encimada por uma vieira, ladeado por dois portais mais pequenos. Na cota do coro, três janelas emolduradas formando um conjunto em estilo "tardo Maneirista", concepção típica do século XVII. De planta longitudinal, com dois rectângulos justapostos da Capela-mor e da Nave aos quais se ligam as duas torres sineiras, com um relógio de mostrador em pedra na torre norte e dois rectângulos da sacristia. Telhados articulados com duas e três águas sobre a igreja, anexas as torres com uma cúpula. Dois pisos flanqueados pelas duas torres sineiras, rasgadas por três pequenas frestas, com cobertura em coruchéu piramidal, completam este edifício. Esta igreja é composta por uma nave única e púlpito a meio da nave. A capela-mor do templo, que inclui dez altares oferecidos pelos "Círios" ou romarias de Lisboa, Almada, Palmela, Sesimbra, Setúbal, Caparica, Azeitão, Arrentela/Amora e pelos "Círios Saloios", guarda-se a velha imagem medieval de Nossa Senhora do Cabo, cuja descoberta no promontório esteve na base deste culto popular. As paredes interiores deste templo, têm abundante revestimento em pedra "Brecha da Arrábida", vulgarmente conhecida como "mármore da Arrábida" e o tecto é excepcional, sendo em abóbada pintado a frescos pela mão do pintor Lourenço da Cunha, segundo encomenda aquando da remodelação do templo, pelo rei D. João V (1689 - 1750), em 1740, considerado, no seu tempo, o melhor dos pintores portugueses no género de arquitectura e perspectiva com uma nova concepção de espaço cénico e decorativo. Por curiosidade este tecto é a única obra do autor que sobreviveu ao Grande Terramoto de 1755. Em finais do século XVIII, é construído uma tribuna real junto ao altar-mor. Igualmente no interior da igreja encontra-se um órgão com características dos finais do século XVIII, princípios do século XIX, provavelmente construído na oficina de Joaquim António Peres Fontanes. Igualmente nesse mesmo ano de 1740, o rei D. João V oferecerá uma berlinda com a Coroa Real à Confraria de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Em redor deste templo, foram crescendo modestas casas para receber e acolher os romeiros que aqui se deslocavam, dando mais tarde lugar à construção de hospedarias com primeiro andar ou sobrados e lojas no piso inferior, também conhecidas por Casas dos Círios. Coube a construção de grande parte das hospedarias ao "Círio Saloio", conforme se pode ler numa lápide na parede das hospedarias do lado norte: "Casas de N. Sra. de Cabo feitas por conta do Sírio dos Saloios no ano de 1757 p. acomodação dos mordomos que vierem dar bodo". Estas duas alas de hospedarias edificadas após 1715 e ampliadas entre 1745-1760. As duas fiadas de habitações que constituem as hospedarias para os romeiros, criam duas linhas que conduzem à igreja, acentuando a cenografia do templo, ao mesmo tempo que realçam um jogo de vãos, de cheios e vazios e de claro-escuro através da arcaria e janelas do andar superior, numa arquitectura "estilo chão", popular do aro saloia, consideradas de grande interesse e monumentalidade. Ao centro, desenvolve-se o vasto espaço de terreiro ou arraial. No seu início ergue-se um cruzeiro em pedra, local onde começa verdadeiramente o Santuário.
Com o intuito de abastecer de água para saciar a sede aos peregrinos e romeiros, foi construída a denominada Casa da Água em 1770, por iniciativa do rei D. José I, que naquele ano ali se deslocou em romaria. Esta casa integrada numa horta murada para o cultivo de bens alimentares com o intuito de abastecer os peregrinos nos dias de festa. Esta Casa da Água, de autor desconhecido, é uma construção em forma hexagonal, coberta por cúpula em meia-laranja rematada por lanternim, cimalha envolvente, cunhais apilastrados marcando as seis faces. É antecedida por uma escadaria de vários lanços. No seu interior pode observa-se uma fonte estilo "rocaille" em mármore, com motivos escultóricos ao gosto italiano Berniniano, bancos de pedra ao longo das paredes, restos de um silhar de painéis de azulejos da fábrica de Belém, com cenas alusivas a caça e aos "Círios". O abastecimento de água era feito por um aqueduto desde a aldeia mais próxima de Azóia, numa extensão de aproximadamente 2,5 quilómetros. Para além da fonte própria, o aqueduto abastecia igualmente um chafariz e dois tanques (no interior e no exterior da horta murada). Uma outra parte foi muitas vezes utilizada para largada de touros. Nas proximidades existem ainda dois poços para abastecimento geral. Nesse mesmo período foi reforçado o equipamento social do santuário, com a edificação de cozinhas, casa do forno, da lenha e cavalariças. Nesse ano de 1770 realizaram-se no Cabo Espichel monumentais celebrações, a que assistiram a Família Real e toda a grande nobreza do Reino, apenas excedidas aquando da deslocação da rainha D. Maria I ao santuário, em 1784. O século XVIII irá marcar o Santuário do Cabo Espichel com todo o esplendor cenográfico do Barroco, tendo sido lançados, para além de sucessivos programas de ampliação e redecoração da Igreja de Nossa Senhora do Cabo e de outras dependências (em que se incluía, por exemplo, um pequeno mas bem apetrechado Teatro de Ópera). A denominada Casa da Ópera edificada junto às hospedarias em 1770. Tinha por objectivo este pequeno teatro com palco, dispondo de camarins e bastidores, promover animação cultural para os romeiros e festeiros. Possuía ainda este teatro, peças de guarda roupa, adereços e cenários próprios. A própria Família Real, que visitava o santuário durante o período de romaria, também promoveu aqui espectáculos. No seu palco chegaram a actuar os maiores artistas e grupos teatrais da Europa, sobretudo italianos, tendo o edifício divisões de apoio que asseguravam a permanência destes grupos durante as festividades. Apesar deste edifício na actualidade estar em ruínas, desde 2007, a Câmara Municipal de Sesimbra presta-lhe homenagem através de um Festival, a que deu o nome de "Temporada de Música da Casa de Ópera do Cabo Espichel" e que acontece todos os anos, entre os meses de Março e Abril onde se interpretam alguns compositores da época. Todo este espaço do Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel racionalizado, geométrico, com uma axialidade arquitecural quase perfeita que liga os elementos principais: a Igreja, Cruzeiro e Casa da Água. As hospedarias são paralelas a este eixo, sendo criado um todo, onde a Ermida da Memória não se inclui. A autoria do projecto foi atribuída por Victor Serrão ao arquitecto João Antunes, embora esteja em aberto qual ou quais os autores desta obra. Todo este complexo que constitui o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel ou da Pedra Mua, assim como a disposição dos edifícios, estão cheios de simbolismos e mistérios ligados ao oculto e ao religioso. Está em curso um projecto da Câmara Municipal de Sesimbra no sentido da preservação e recuperação da ala norte do Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Com esta excelente iniciativa, para além da preservação deste conjunto arquitectónico, espera-se ainda que a CMS incremente um polo turístico neste espaço.
Em 1804 o príncipe regente D. João VI (1767 - 1826), ordena para benefício dos vendedores de toda a qualidade de víveres durante o arraial de Nossa Senhora do Cabo Espichel, que estes não paguem pensão nem terra, durante a utilização do espaço ao "Círio Saloio", mandando afixar uma placa no local com esta informação no ano de 1806. A partir de 1807, com a ida da Corte Portuguesa para o Brasil, devido às invasões francesas, as festas conheceram um natural e inevitável abrandamento, contrabalançado por um forte incremento registado durante o período miguelista. Apesar do seu progressivo declínio, os "Círios Saloios" continuaram a contar com a devoção e o contributo da Família Real Portuguesa, nomeadamente com D. Maria II, D. Pedro V, D. Maria Pia e D. Carlos I. A partir de 1887 foi introduzida uma mudança no antigo ritual. Em vez da longa procissão dos romeiros até ao Cabo Espichel, instituiu-se uma imagem peregrina entregue directamente entre as freguesias, deixando de se verificar a deslocação ao santuário. Após um breve interregno registado entre 1910 e 1926, as romarias populares em honra de Nossa Senhora do Cabo foram retomadas, tendo prosseguido até hoje praticamente sem interrupções. Na transição do século XIX para o século XX, o santuário entrou numa fase realmente de declínio e em 1976, o paleontólogo Miguel Telles Antunes descobriu que as misteriosas pegadas não eram da alegada mula que a lenda evocava, mas sim pegadas fósseis de um grupo de saurópodes do Jurássico Superior, tendo sido classificado como Monumento Natural. O conjunto do Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel assim como o farol que está localizado junto a este espaço, constituem um lugar rico em termos arquitectónicos onde podemos encontrar reunidos num só lugar Arquitectura Militar, Religiosa e Civil, com estilos arquitectónicos bem diferenciados. Um espaço cenograficamente concebido, com escala humanizada, em que o homem se sente parte integrante do cenário e não apenas um mero espectador. Toda esta cenografia criada neste local idílico tem muitos segredos por desvendar, para não crentes e crentes de Nossa Senhora do Cabo ou meros turistas que ficam maravilhados com este espaço deixado ao abandono. Arte e subtileza que vamos perdendo, ignorando espaços com uma identidade. Identidade essa que foi o espelho da sociedade que o edificou. Existem planos desde à muito por parte da Câmara Municipal de Sesimbra para o seu restauro e requalificação, algumas coisas têm sido feitas nesse sentido outras aguardam melhores dias. Considerado este espaço, como os letreiros para turistas e visitantes indicam "Este Património também é seu. Proteja-o!", parece haver no entanto algo de contraditório por parte de quem dirige este espaço, nomeadamente no interior da igreja, no que respeita à captação de imagens (fotos). Ora se é um património de todos deveria ser e poder ser partilhado por todos gratuitamente no que respeita à captação de fotos (sempre com a advertência da não utilização de flash por questões técnicas e de preservação das obras, como nos demais espaços públicos onde se expõem cultura para todos), não proibindo uma simples foto de recordação desse património de todos por parte de quem visita o templo, de uma forma austera até arrogante, por parte dos elementos que zelam pelo espaço. A cultura deve ser de todos e para todos, não da exclusividade de alguns. Vale pois a pena e apesar de tudo, uma visita atenta e demorada a este espaço rico em património, cultura, fé e misticismo. Este culto a Nossa Senhora do Cabo Espichel ou da Pedra Mua, não se trata de um culto individual, como acontece na maioria das romarias minhotas ou em Fátima, mas de um verdadeiro voto colectivo, de um acto ritual espontâneo feito por toda a comunidade e por ela assumido. Em muitos casos, como no da Senhora do Cabo, na origem do "Círio" está a protecção contra catástrofes naturais, típico da época, ligadas aos flagelos da agricultura ou às epidemias de peste; por esse motivo, e porque o perigo é ou foi colectivo, também a promessa o é, devendo ser paga pela comunidade como um todo ou por uma Confraria em seu nome, ao longo de sucessivas gerações de romeiros. É também neste sentido que se compreende o grande destaque dado aos "anjos", jovens que no decurso do cortejo processional vão cantando as "loas" em honra da Senhora do Cabo: são eles quem representa a voz do povo, que assim contacta o santo. E como este intermediário não pode ter mácula, já que representa a própria comunidade dos crentes, devem os anjos ser sempre rapazes com idade nunca superior aos 12 anos… A tradição das três voltas ao cruzeiro, a arrematação das bandeiras e a romagem da imagem da Santa, continuam a evocar a vontade de tocar o sagrado, apaziguando o que tem de hostil este lugar. As festas em honra de Nossa Senhora do Cabo Espichel ou de Nossa Senhora da Pedra Mua, realizam-se anualmente entre os dias 23 e 26 de Setembro. A igreja de Nossa Senhora do Cabo Espichel é também frequentemente escolhida por muitos casais para a celebração dos seus casamentos assim como alguns baptizados. Cabo Espichel, um lugar que, como alguns afirmam, os deuses quiseram que fosse diferente, onde o mistério surge numa atmosfera mágica. Espaço onde o encontro com a natureza é coincidente com o sentir de uma força superior, misteriosa, que nos alivia as preocupações e revitaliza o ser. Um local que convida à meditação e paz de espírito. Várias foram as culturas que aí inscreveram as suas crenças, comungaram a sacralidade independentemente da situação existencial de cada um. O Cabo Espichel, local de práticas culturais desde tempos muito remotos, sacralizado no Neolítico final. Muitos são os fenómenos que desde sempre intrigaram as populações locais e envolventes, desde lendas esotéricas de sereias e tritões, fenómenos solares observados na Península Ibérica, que, segundo lendas, coincidiram com o Nascimento de Jesus, sentidos com maior intensidade no Promontório do Cabo Espichel e Serra da Arrábida. A verdade é que todos os que vêm ao promontório do Cabo Espichel, seja qual for a sua fé, sentem algo de especial, algo superior que os transcende. Neste local mítico confluíram as três grandes religiões monoteístas: o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo.
Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".
Texto:
Paulo Nogueira