domingo, 9 de fevereiro de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira


O Voto de D. Miguel I de Portugal

O rei D. Miguel I de Portugal (1802 - 1866), apesar de temperamento impulsivo, era adepto de caçadas e touradas, não hesitava em entrar na arena para desafiar o touro. Mais do que a vida no paço real, seduzia-o a presença assídua em tabernas e meios populares. A boa figura, a força e a bravura faziam dele uma figura com carisma, quer fosse amado ou odiado. A grande lacuna de D. Miguel relacionava-se com alguma falta de formação. Apesar de ter aprendido teologia e inglês, não era um jovem dotado nem ligado aos ensinamentos escolares, tendo tido uma instrução pouco rigorosa. Era no entanto um homem de aparentes ideais católicos e tradicionalistas, os quais defendia com frontalidade. D. Miguel era pouco popular entre a burguesia do seu tempo, mais aberta à influência do ideário liberal, mas gozava de grande popularidade entre o povo, que, caído na miséria após as guerras contra Espanha e França, procurava num rei a figura forte de um salvador. A isto acresce que era a Igreja Católica quem, à época, muitas vezes matava a fome do elevadíssimo número de mendigos e deserdados de mais de 30 anos de guerras, pelo que a aparente inimizade dos liberais face a esta instituição terá levado a que o povo se colocasse ainda mais do lado miguelista. D. Miguel I é aclamado rei de Portugal em 11 de junho de 1828. Cinco meses depois, no dia 4 de novembro de 1828 D. Miguel, vindo na sua carruagem de Queluz com duas das infantas suas irmãs, a princesas D. Isabel Maria de Bragança (1801 - 1876) e D. Maria 'da Assunção de Bragança (1805 - 1834), e ainda uma aia, perto da Quinta do Caruncho quando se dirigia de Queluz para o Paço Real de Caxias, sofreu um desastre que lhe ia custando a vida e a todos que o acompanhavam. A estrada por onde circulavam era cheia de covas e em muito mau estado, situação típica na época na maioria das estradas em Portugal. A certa altura, uma sub-roda fez baloiçar a carruagem, que se voltou, tendo as infantas sido cuspidas para um dos lados. D. Miguel, enleado nas rédeas, ficou entre as rodas. Os cavalos, espantados, desataram numa corrida e a carruagem passou por cima do rei, fracturando-lhe o fémur da perna direita. D. Isabel Maria ficou ferida na região frontal, ao passo que sua irmã D. Maria da Assunção teve fortes contusões na coxa esquerda. Por curiosidade os cavalos eram "malhados" quanto à pelagem, pelo que o povo começou a chamar "malhados" aos liberais e maçons, seus inimigos. Como curiosidade relativa a este acidente, logo depois do terrível acidente, havendo por ali perto uma casa de gente do campo, D. Miguel foi rapidamente levado a ela para se recompor um pouco e esperar melhores socorros. Segundo relatos, ficou estendido num canapé, apoiando a perna numa cadeira, e aceitou tomar um chá. Poucos dias depois D. Miguel enviou a essa casa no campo um serviço de chá magnífico, um canapé e uma cadeira de construção muito boa e de valor (tudo o que foi usado daquela casa para o serviço do Rei foi oferecido replicado em muitíssimo maior valor). Em 1945 há registo dessa mesma casa, que nela continuava a viver a mesma família que guardava com muita estima conservados todos os presentes do rei, no mesmo sítio, e guardando pormenores da visita que tinham resistido aos tempos naquela pequena tradição oral familiar. Foi depois conduzido imediatamente em maca para o Paço de Queluz, D. Miguel ficou entregue aos cuidados do seu grande amigo barão de Queluz e aos outros médicos da real câmara: Jacinto José Vieira, António Joaquim Farto e Manuel Lopes de Carvalho. Só dois dias antes do Natal é que conseguiu levantar-se sem auxílio de muletas: até ali, o rei esteve de "perninha", como se dizia à época. O rei D. Miguel, pelas suas qualidades e ainda pelo ideal que encarnava, era então um autêntico ídolo popular. Quando, em 1823, triunfante a Abrilada, D. Miguel foi obrigado, apesar do seu triunfo, a seguir para o exilio de Viena de Áustria, o povo, que o compreendia e que por ele era compreendido maravilhosamente, exteriorizou a sua mágoa numa quadra que ficou célebre pela candura e sinceridade da sua inspiração:

Se até os passarinhos choram
Que não têm entendimento,
Que fará quem já não vê
Dom Miguel há tanto tempo!

E ao regressar do exilio, o prestígio que usufruiu junto do povo, a dedicação de que era alvo, a confiança que nele punha a alma popular, eram grandes, a ponto de ser idolatrado por parte de quase toda a gente. E tal forma o rei era adorado, que após esta notícia do acidente de D. Miguel, alguns populares um pouco distante do lugar do desastre, acorreram ao local e abateram as mulas que puxavam a carruagem acidentada. Pelo facto de as mulas serem às malhas, o povo lhes atribui-lhes os mesmos instintos que aos liberais. Já ao tempo as coplas depreciativas contra os liberais eram às dezenas, a inspiração que as ditava, embora sincera na maioria dos casos, emparelhava contudo com a dos hinos e cantatas liberais:

Fora, malhado!
Chucha, judeu!
Acabou-se a guerra:
Dom Miguel é Rei!

Mas, com o desastre de Queluz, a inspiração popular ganhou um carinho extraordinário por D. Miguel. Ferviam as coplas, as canções, os hinos em louvor do ídolo popular, as igrejas enchiam-se de gente que pedia a Deus as melhoras do rei, sucediam-se as ladainhas, as rezas várias, as promessas, os Te-Deums pela saúde do monarca, considerado por muitos como um dos mais queridos do povo português. Dois dias antes do Natal, como relatado, D. Miguel finalmente levantou-se e os médicos deram lhe alta, o povo explodiu de enorme satisfação pelo facto. Uma das manifestações dessa enorme satisfação foi a quadra popular que depois era entoada e cantada por toda a gente.

D. Miguel é bonito,
É bonito e bem feito.
Quebrou as pernas,
Ficou sem defeito.

A 6 de janeiro de 1829, no Dia de Reis houve beija-mão em Queluz, em 29 de janeiro solene Te Deum na Sé de Lisboa ou de Santa Maria Maior, pelo restabelecimento do rei, tal como a 22 de fevereiro, aniversário da sua chegada do exilio, com sermão pelo Padre José Agostinho. Por todo o país sucederam-se as missas e Te Deum em acção de graças ao rei. E D. Miguel I, que se apegara com a Senhora Aparecida, ou da Rocha, deslocou-se até ao local no Jamor, igualmente a 29 de janeiro de 1829 na companhia das suas irmãs e de vários membros da corte para dar-lhe graças pelo seu restabelecimento e segundo os relato da época, o rei ofereceu-lhe as muletas a que durante alguns dias se apoiara durante a recuperação. O episódio das mulas serviu aos liberais para darem largas aos seus sentimentos contra D. Miguel. Os folhetos mais célebres a respeito desse acontecimento de que há conhecimento são: As mulas de Dom MigueI, epistola traduzida livremente de Mr. Viennet, (Epitre aux mules de Dom Miguel por Jean Pons Guillaume, Paris 1829, in 8.°); Dedicatória dirigida ás mulas que arrastaram D. Miguel pelo autor do Dythirambo cm honra das sobreditas bestas, o Dr. João Poer (João Bernardo da Rocha Loureiro) Londres, lmp. por M. Calero, 1829, in 32 ; La Muleide, réponse à 1' Epitre aux mules de D. Miguel. Paris 1830. (Veja: Ernesto do Canto: Ensaio bibliographico, Catalogo das obras nacionaes e estran· geiras relativas aos sucessos políticos de Portugal nos anos de 1828 a 1834. 2.• edição. Ponta Delgada, S. Miguel, Typ. do Archivo dos Açores 1892. Este acontecimento deu origem, no dia 29 de janeiro de 1829, a uma solene Acção de Graças à Senhora da Rocha que se encontrava então na Sé de Lisboa, com a presença da família real. Esta cerimónia foi imortalizada pelos seguidores do absolutismo com várias gravuras alusivas ao acontecimento, que foram feitas na época. Assim se reforçava o mito da Senhora da Rocha como protectora do ideário tradicionalista/absolutista. Os seus seguidores políticos absolutistas/miguelistas, também o acompanhavam nesta devoção, assim como grande parte do clero cujos direitos/privilégios vinham sendo cerceados pelas políticas liberais. Foi igualmente este acontecimento que levou os seguidores do miguelismo a fazerem várias gravuras sobre este acontecimento, assim como ao aparecimento do culto de Nossa Senhora da Rocha noutras localidades do país onde os seus partidários estiveram mais activos. Após a descoberta desta singela figura em barro, numa época de grande crise política em Portugal, seria nesse mesmo local que se afirmou com grande força a dedicação popular ao culto que poucos anos depois viria a ser alvo de aproveitamento político pelas forças conservadoras contra a nova Constituição e os ideais do Liberalismo. Só a derrota dos partidários de D. Miguel veio a obstar à expansão deste culto que estaria destinado a um sucesso semelhante ao da questão de Fátima, ocorridas cerca de um século depois, também no mês de maio e igualmente numa época de grande crise económica e política, tendo igualmente estas inicialmente sido aproveitadas pelas forças conservadoras da época como antidoto contra o anticlericalismo do regime republicano. Este acontecimento relacionado com D. Miguel I acabou por dar mais fama e ênfase à questão de Nossa Senhora da Conceição da Rocha do que a lenda popular propriamente em si. É impressionante como se gerou à sua volta uma fecunda revitalização da fé que não passou despercebida, e que foi até alvo de registo nas crónicas da época, como nos homens de Letras, exemplos: Tomás Ribeiro, Pinheiro Chagas, Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz.



De recordar que o Santuário de Nossa Senhora da Rocha, situado no vale do rio Jamor perto de Linda-a-Pastora, freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras, é consagrado à imagem de Nossa Senhora da Conceição, aparecida, segundo a lenda, no interior de uma gruta funerária, perto do então denominado Casal da Rocha de que tirou a designação. A lenda da aparição da imagem é assim contada em registo da época por Thomaz Ribeiro (1831 - 1901), o grande impulsionador e defensor da construção de um Santuário para esta imagem:
"No dia 28 de maio de 1822, perseguindo um coelho que alli se escondera, entraram na gruta do Jamor percorrendo de rastos a furna por onde elle entrára, sete rapazes que andavam brincando e chapinhando nas margens e nas ilhotas de Jamor. Os seus nomes são: Nicoláo Francisco, Joaquim Nunes, Joaquim Antonio da Silva, Antonio de Carvalho, Diogo, José da Costa e Simão Rodrigues. Os mais novos tinham 11 annos, 15 os mais velhos. Entrando e recuando apavorados, no que levaram longo tempo, conseguiram emfim chegar onde puderam erguer se e respirar. Sondando e apalpando acharam e tomaram nas mãos ossos humanos como poderam verificar quando voltaram ao rio. As familias que ha muito os esperavam em suas cazas não receberam bem os retardatarios e não crêram mesmo na historia phantastica do descobrimento.
No dia seguinte porém começou de levantar-se e avolumar-se nos differentes logares donde eram naturaes os pastoritos, o boato da existencia d’uma gruta desconhecida, e a apresentação dos ossos e a insistencia dos exploradores foi firmando, se não certezas, desejos de apurar a verdade. No dia 30 bastantes pessoas acompanhando os retardatarios da ante-vespera ao rio, abrindo as franças dos salgueiros acharam uma lura na grande rocha que se afundava no Jamor.
Não ousaram porém aventurar-se, os mais prudentes; mandaram entrar os rapazes com ordem de trazerem outros ossos. Era a prova evidente de que elles disseram a verdade. E desde que a conheceram destinaram para o dia 31 procurar com luz que dentro accenderiam, o que podesse achar-se na gruta onde era certo haver estado gente. No dia 31 foram pois, com tochas, para dentro serem accendidas. Entraram na frente os sete moços, lá d'outros acompanhados, e accesa uma tocha, encontraram a pequenina imagem da Virgem."
Conta-se ainda que Frei Cláudio da Conceição, cronista do reino à época e grande apologista da Senhora da Rocha, também naqueles dias aí se deslocou para ver o sucedido, e refere que, na tarde do dia seguinte, a dita imagem da Senhora desapareceu de forma misteriosa. Gerou-se grande tumulto e inquietação vindo a ser encontrada no dia 4 de junho sobre uma oliveira, ali perto, e por ordem da autoridade foi reposta na gruta, alumiada e guardada pelas forças da autoridade por ordem do Juiz de Fora de Oeiras. O achado desta pequena imagem de barro da Virgem Maria é rapidamente divulgado por todo o Jamor e regiões circunvizinhas, chegando mesmo aos ouvidos do rei D. João VI (1767 - 1826). O entusiasmo popular rapidamente fez deste espaço um lugar de peregrinação e de devoção mariana. As romagens de fiéis, vindos de muitas partes da região de Lisboa e seu termo, da Estremadura, de outras partes do país, bispos, religiosos, nobres da corte, ricos e pobres sucedem-se de uma forma rápida e surpreendente. A história da imagem aparecida no Jamor é por demais conhecida, assim como a devoção a este culto por parte da rainha D. Carlota Joaquina (1775 - 1830), e do seu filho D. Miguel, explicitada em vários relatos da época. Menos conhecido é o problema de saúde que então afectou a rainha D. Carlota Joaquina, a qual supostamente, terá sido curada por intersecção desta imagem. Mais tarde a rainha consorte D. Maria Pia viria igualmente a recorrer às preces à Senhora da Rocha quando se encontrava doente.



Eram tempos difíceis para o país e a lenda associada à descoberta desta imagem foi para todos um sinal de esperança. O rei D. João VI decidiu portanto que ali não era local para se lhe fazer culto, mandando-a transladar para a Sé Patriarcal de Lisboa, contrariando a vontade do povo, onde permaneceu 60 anos. Só em 30 de setembro de 1883, por ordem do rei D. Luiz I, a imagem é trasladada por via fluvial desde Lisboa até à praia da Cruz Quebrada, sendo levada daí em procissão com grande pompa e festejos até ao local da aparição, para ai ser recebida pelo rei. Foram de tal forma importantes esses festejos, que todo o recinto foi iluminado por luz eléctrica, segundo os registos e notícias da época, algo que era uma novidade para o tempo. Após estes festejos seguiu para a Igreja de S. Romão de Carnaxide, onde esteve 10 anos. Foi então terminada a construção do templo definitivo, o Santuário de Nossa Senhora da Conceição da Rocha, por cima da gruta da aparição, para que acolhesse com dignidade a imagem da Virgem. O projecto do Santuário da Rocha deve-se ao arquitecto José da Costa Sequeira, sobrinho do grande pintor Domingos António de Sequeira. O Santuário foi construído entre 1830 e 1892, tendo sido inaugurado em 1893, contando com a presença da rainha D. Amélia e os seus filhos os príncipes D. Luiz Filipe e D. Manuel. Estiveram ainda presentes o Presidente do Conselho Dr. Hintze Ribeiro e mais entidades de relevo da época. A 4 de outubro de 1899, o Santuário é declarado "Capella Real" "isento" e "especial dos Régios Paços" ficando o rei como Juiz Perpétuo desta irmandade, passando esta a denominar-se "Real Irmandade de Nossa Senhora da Conceição da Rocha". Este Santuário foi, durante muitos anos, desde meados do século XIX, um dos locais de maiores peregrinações religiosas do país. Com mais de um século de existência, as Festas de Nossa Senhora da Conceição da Rocha são as mais antigas desta região dos arredores de Lisboa e tiveram um tempo glorioso, em que durante décadas foram as maiores festividades do concelho de Oeiras. Desde 2015, que tem sido feita uma aposta na revitalização destas festas populares, tendo por objectivo recuperar o brilho e a dimensão que estas festividades outrora tiveram. Realizam-se anualmente entre de 26 de maio a 4 de junho. De referir como remate deste episódio relatado, tal como o da lenda da Senhora da Rocha, que ambos ocorrem, como já referido, numa época de grande crise política em Portugal e onde muitos valores religiosos, tal como certas crenças estavam ainda muito enraizados nos hábitos e credos do povo assim como de certos estratos da sociedade portuguesa. Embora este culto à Senhora da Rocha fosse inicialmente apropriado pela causa tradicionalista de D. Miguel I, com o fim da guerra civil, o decorrer do tempo e o atenuar das quezílias ideológicas, conquistou a simpatia dos descendentes de D. Pedro IV (1798 - 1834), que lhe prestaram tributo e, em vários casos, fizeram parte da sua irmandade.



Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".