Se La Fontaine vivesse em Évora no Séc. XXI e, em vez de pena e papel, usasse guitarras clássicas, violas campaniças e bateria, poderia ter escrito – se não sobre o leão e o rato, o menino e a mula ou a lebre e a tartaruga – sobre outros animais bem mais actuais: as novas galinhas dos ovos de ouro, as vacas sagradas de agora, os patos psicopatas, as toupeiras que rastejam na lama e as doninhas perfumadas.
Se o ainda mais longínquo Ésopo dissertava na Grécia Antiga sobre as diferenças entre a cigarra e a formiga, os Bicho do Mato – que ainda assim são cigarras pela música e formigas pelo seu trabalho - escrevem sobre outros insectos e afins, cantando sobre aranhas coxas, moscas sem asas, libelinhas e um raro escorpião amável. E o nosso Bocage – também célebre pelo seu poema satírico “O Corvo e a Raposa”, bem como outras fábulas em verso do mesmo calibre – talvez se revisse nas raposas matreiras do Portugal de agora e nas ratoeiras que fintamos no nosso dia-dia.
O Disco
“A Vingança do Bicho do Mato” é o primeiro álbum da banda eborense Bicho do Mato, que tem quatro pés: Daniel Catarino (voz, guitarras, baixo, coros, latapau e sonoplastia), Tó Zé Bexiga (viola campaniça, guitarra acústica, teclados e coros), Zé Peps (guitarra acústica, guitarra slide, ukulelé, bandolim e coros) e Daniel Meliço (bateria cocktail), que durante a gravação contaram com a colaboração de Ana Miró (voz e coros) e Pedro Pinto (coros e "trompete de boca"). E as canções que cantam – que toda a gente poderá começar a ouvir no início de Outubro – são fábulas adaptadas à realidade humana, política, social e cultural da primeira metade da segunda década deste século, em Portugal e no Mundo. E estas fábulas encerram uma moral? Talvez sim, talvez não… O melhor mesmo é perguntar-lhes.
A Música
A música dos Bicho do Mato, essa, não é nenhum bicho de sete cabeças. Mas se acaso as tivesse, seis delas poderiam responder por nomes estrangeiros: Acid Blues, Psychedelic Rock, Grunge, Alt.Country, Heavy-Metal e Garage. Mas a sétima e maior – ou a primeira e a mais pequena, vá-se lá contabilizar – responde pela singela designação de Música Tradicional Portuguesa. Porque, se muitas vezes, é a enciclopédia (incompleta) do imenso universo do rock anglo-saxónico que se ouve, por outras vezes – muitas – é o assomo da nossa tradição musical rural que se ouve aqui e ali e mostra todo o seu esplendor. Seja num tema em que à voz se junta apenas uma viola campaniça, seja noutras ocasiões em que a mesma campaniça, o ukulele-irmão-do-cavaquinho ou o bandolim se intrometem decisivamente no meio dos seus primos eléctricos.
O Padrinho
Nada disto acontece por acaso. Como também não foi certamente por acaso que o Bicho do Mato nasceu em 2011, quando o realizador e recolector de muitas das nossas músicas Tiago Pereira desafia o músico Tó Zé Bexiga – já seu conhecido de outro grupo que junta os róques à tradição, Uxu Kalhus – a reunir outros músicos de Évora e a gravar alguns temas originais para A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Tó Zé (Uxu Kalhus, NMB – No Mazurka Band, Ocarina, Bonecos & Campaniça) chamou à liça Zé Peps (Prós & Contras, Gasgânia, Hands on Approach, Pucarinho, Aqui Há Baile), Daniel Catarino (Uaninauei, O Rijo, Cajado, Long Desert Cowboy, Oceansea e em nome próprio) e Daniel Meliço (Pucarinho, Bandex), e a partir daí, dezenas de canções começaram a jorrar nos ensaios e nos trabalhos de casa… Mas, para já, são treze as que podemos ouvir neste disco.
A Vingança
O primeiro álbum dos Bicho do Mato, “A Vingança do Bicho do Mato”, é editado pela AVM – Alain Vachier Music Editions, em parceria com a Capote Música.