A obra que Fernando Pessoa (1888-1935) compulsivamente foi imbricando, com o seu polifacetado e visionário talento criador de poeta icónico da lusofonia, parece-se com uma espécie de enorme delta literário onde se sedimentaram os mais diversos materiais procedentes de tradições, doutrinas e disciplinas do saber universal, e para cuja estratificação residual não terá deixado de contribuir o seu fervoroso “vício” pela leitura.
Tendo estudado entre 1895 e 1905 na África do Sul e recebido uma educação britânica, é em particular na literatura dos clássicos Shakespeare e Milton, dos românticos Coleridge, Wordsworth, Shelley e Byron, dos mestres da literatura norte-americana como Edgar Allan Poe e Walt Whitman que Pessoa encontra em Durban o terreno fértil para as sementes da sua futura produção heteronímica, plasmando os contornos estilísticos e as densidades poético-filosóficas de dezenas de figuras fictícias, com personalidade e linhas estéticas próprias, reunidas sob a característica comum de escreverem todas em inglês.
Ralph Waldo Emerson, outro grande autor de língua inglesa que deixou marcas indeléveis em Pessoa, no seu ensaio Books, descreve uma biblioteca como um lugar onde o leitor se encontra rodeado de centenas de queridos amigos encarcerados, que só encontrarão a liberdade quando com eles se iniciar uma conversa. Fernando Pessoa, que teve uma profunda e prolongada relação com os livros da sua biblioteca, chegou a libertar muitos desses amigos, desvendando preciosíssimos laços entre as leituras que cultivava e a literatura que veio a produzir. Foi nomeadamente a partir da sua vasta memória de leitor dialogante, que Pessoa, a 29 de Novembro de 1935, no Hospital de S. Luís dos Franceses, redigiu as suas célebres últimas palavras («I know not what to-morrow will bring»). Lidas, durante décadas, segundo parâmetros hermenêuticos ocultistas, são, na verdade, herança plausível de um epigrama de Palladas de Alexandria («To-day let me live well; none knows what may be to-morrow») publicado no primeiro volume da Greek Anthology (1916), e também conservado nas prateleiras de Pessoa até ao fim da sua vida.
Este livro é um dos mais decisivos para o poeta, entre os mais de 1300 títulos que hoje em dia constituem a sua biblioteca particular. Publicado em 4 volumes bilingues pelos editores William Heinemann e G. P. Putman’s Sons, fornece-nos uma preciosa noção do vasto conhecimento que Pessoa também tinha da poesia epigramática da cultura clássica grega e surpreende-nos pela influência que alguns dos seus maiores representantes tiveram sobre ele num período em que se registam as grandes produções líricas de Fernando Pessoa ortónimo em inglês (1917-1921). Precisamente alguns desses poemas mais simbolistas e introspectivos, ao lado de outros tão grávidos de metafísica, assinados pelos alter-ego literários Charles Robert Anon e Alexander Search, deram rosto e corpo às 14 músicas deste disco de raro encanto de Sofia Vitória.
«As últimas palavras de Fernando Pessoa foram escritas em inglês. Foram elas que um dia ficaram a ecoar em mim, como uma das suas charadas, e que constituíram uma porta de entrada para uma das realidades do mais universal poeta português que até há pouco tempo me era desconhecida.
Tendo estudado na África do Sul e recebido uma educação britânica, foi na língua inglesa que Pessoa cresceu e fez a sua aprendizagem, tentando múltiplas formas, diferentes metros, ensaiando a poesia dramática e tomando consciência de si próprio, na procura constante da sua identidade e da sua relação com o mundo.
Como um disco é sempre um pretexto para partir em viagem e encontrar respostas em nós próprios, decidi viajar para esse novo lugar da poesia e prosa de Pessoa na língua inglesa, convidando para esta aventura os músicos José Peixoto (guitarra clássica), Luís Figueiredo (teclados e arranjos), Eduardo Raon (harpa e guitarra eléctrica), António Quintino (contrabaixo) e Joel Silva (bateria), e um conjunto de compositores que muito admiro: Mário Laginha, Amélia Muge, José Mário Branco, António Zambujo, João Paulo Esteves da Silva, Paula Sousa, José Peixoto, Joana Espadinha, Luís Figueiredo, Daniel Bernardes, Edu Mundo, e João Hasselberg.
O que é fascinante em Pessoa é este desdobramento interminável que nos conduz à enorme pluralidade, contradição e potencialidade que somos. O que é desassossegante em Pessoa é a transparência do confronto com a fragilidade que cada ser humano carrega. Na sua permanente construção e desconstrução de mundos e de figuras, aponta para portas que se abrem para novas portas, que se abrem para novas portas, num movimento de contínua descoberta, colocando assim as questões: onde começa e termina o real e a ficção? é tudo real? é tudo ficção? o que sou, o que é ser? onde começo e acabo? começo e acabo? sendo outros de mim continuo a ser eu mesmo? serei eu mesmo se não habitar todos esses outros?
Se no Livro do Desassossego podemos ler “Minha pátria é a língua portuguesa”, é lá também que iremos encontrar: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo”. Nesta viagem ao conceito de identidade, compreendemos que, de certa forma - tal como um eco - somos todas a mesma pessoa, partindo de uma mesma essência, que se projecta e reverbera sob diferentes formas.
“Echoes” [do grego ἠχώ (ēchō), “som”, e do inglês “ecos”] é um conjunto de canções com som de memória mas também de mundo novo que se constrói e que ecoa de forma profunda na essência universal de cada ser humano; de cada alma, de cada pessoa que somos, de todas as pessoas que foi Fernando Pessoa.» Sofia Vitória