Por vezes, no Fado como em outros géneros musicais já muito antigos, com uma História feita de factos reais ou lendários, de figuras tutelares, de regras próprias – seja nos poemas, nas tradições melódicas e harmónicas, na forma própria como cada intérprete contribui para a sua preservação e evolução –, é preciso reservar espaço para o “silêncio”. Para que a música, as letras e as vozes que o vão quebrando – e, paradoxalmente, para que este “silêncio” em forma de música assim continue – lhe acrescentem algum significado, algo mais que não existia antes, alguma nova labareda nesta enorme e sempre viva fogueira que é a tradição do Fado.
E é o respeito, a atenção e, acima de tudo, o enorme amor que António Vasco Moraes tem pelo Fado, pela sua história, pelos seus vultos maiores e pela sua tradição que o obriga, sempre, a pesar o quando e o porquê de cada disco que edita. Com uma carreira iniciada na primeira metade dos anos 90 – numa altura em que pouquíssimas pessoas da sua idade se atreviam a cantar Fado – e cimentada na década seguinte, António Vasco lança agora o seu segundo álbum, apropriadamente chamado “Silêncio”, um disco que sucede a “Saudade”, publicado em 2011. E se “Saudade” era o culminar digital de uma vivência no Fado de duas décadas a cantar em variadíssimas casas de fados de referência e em espectáculos históricos – “Fados” de Ricardo Pais (1994), “Amália” de Filipe La Féria (2003) e “Casa de Fados” de Tiago Torres da Silva (2004) –, o novíssimo “Silêncio” mostra um ainda maior refinamento e uma ainda maior maturidade na sua forma muito própria de pensar, sentir, escrever e cantar Fado. Um Fado que mergulha no seu riquíssimo passado e, com humildade, sobriedade e paixão, lança ainda outras pistas para o seu futuro.
“Saudade” trazia consigo muitos fados tradicionais amados por António Vasco – fados de Marceneiro, Joaquim Campos, Fontes Rocha, João Maria dos Anjos… –, alguns com letras escritas por si próprio, outras de Tiago Torres da Silva, João Ferreira-Rosa ou da poetisa angolana Alda Lara. Mas trazia também “Porto Sentido” (Rui Veloso/Carlos Tê) e o tema brasileiro “De Mais Ninguém” (Marisa Monte/Arnaldo Antunes”). E tinha o enorme José Pracana a tocar guitarra em “Adeus Mouraria”.
Agora, em “Silêncio”, estão com ele dois dos seus companheiros do disco anterior – Dinis Lavos na guitarra portuguesa e Jaime Santos Jr., filho do mítico Jaime Santos, na viola de fado –, para além do baixista Francisco Gaspar e de dois convidados muito especiais: a também fadista Maria Ana Bobone que aqui não canta mas toca piano em “Ai Esta Pena de Mim”, de Amália Rodrigues, e Silvestre Fonseca, mestre da guitarra clássica, em “La Barca”, um bolero do mexicano Roberto Cantoral, cantado por António Vasco em espanhol. A tradição, a mais pura tradição, encontra-se no ousado “Romance Incompleto” – rapsódia criada por Manuel de Almeida em que são cantados os Fados Pinóia, Lolita, Alberto, Calisto e Mouraria –, em “Lembranças” (o Fado Esmeraldinha de Júlio Proença), “Promessa de Amor” (o Fado Zé Negro de Francisco José Marques), “Fado Louco” (de Alfredo Marceneiro e baseado no Fado Corrido) ou “Fado das Violetas” (o Fado Alvito de Jaime Santos). E há ainda lugar para uma visita ao cancioneiro tradicional rural, em “Cantigas”, um tema popular com letra de Maria Manuel Cid.
Com outros poemas – originais e clássicos – de António Vasco Moraes e de João Villaret, Manuel de Almeida, Ricardo Rosa, Tiago Torres da Silva, Maria Manuel Cid, Amadeu do Vale ou Maria Luísa Baptista, “Silêncio” demonstra bem quanto António Vasco Moraes – e a sua voz sóbria, moldada pelos ecos e memórias de nomes como Tereza Tarouca, Fernanda Maria, Maria Teresa de Noronha, Carlos Zel, João Ferreira-Rosa ou Alfredo Marceneiro – já definiu um espaço que é só seu no imenso universo do Fado. Um universo que sempre cresceu nele e com ele continua a crescer também.