quarta-feira, 25 de setembro de 2024

João Farinha "A Conta que Deus Fez"



A alma do novo disco de João Farinha, atento a olhar e acolher a tradição mas ciente e consciente de uma missão que corresponde ao alargar de horizontes e ao ultrapassar de fronteiras, aparece sintetizada em alguns dos títulos que apresenta. Faz a viagem entre as Águas Passadas e o que Será, sem atropelos mas sem receios, sem cedências às modas mas sem confinamento às ortodoxias. Assume os Verdes Anos, explica como é Viver Assim e, por tudo isso, mostra-nos desde logo que é desta forma, com um sábio balanço entre a raiz e a utopia, entre a base sólida e a aventura da novidade, que se consegue chegar Tão Longe. Não receia sequer o aparente paradoxo de ter feito a antestreia logo com a Balada da Despedida, mas numa versão corajosa e digna de atenção e de carinho. Estamos perante um daqueles casos, nem por isso muito comuns, em que o todo é ainda maior do que a soma das partes – cada capítulo de "A Conta que Deus Fez" merece e alcança a vida própria, mas acaba por ganhar ainda mais sentido e maior alcance integrado no conjunto de uma obra que justifica o recurso a uma expressão, que ouvimos amiúde noutros cenários mas que não destoa aqui: a que nos fala de “contas certas”.



Para princípio de conversa, convirá prevenir de forma inequívoca, que estamos diante de uma investida clara, e hoje infelizmente rara, nos domínios, abrangentes, do Fado de Coimbra. Ligado, ainda e sempre, aos princípios há muito traçados pelos eternos, como António Menano, Edmundo Bettencourt, Luiz Goes e José Afonso, depois dilatados por criadores e praticantes como Adriano Correia de Oliveira, António Portugal, Rui Pato, António Bernardino, Jorge Gomes e Francisco Filipe Martins. Sem esquecer – seria impossível e criminoso fazê-lo – a superlativa contribuição do universal Carlos Paredes. Esta lista coincidirá, em larga escala, com a dos heróis musicais do próprio João Farinha, desde cedo mergulhado nas ruas, travessas e escadinhas desta escola musical, tão injustamente subvalorizada por estes dias, quando se olha para o mapa meteorológico musical nacional, sem consciência de que aqui temos direito a uma variação climática apetecível e perene. Há, mesmo com todas as desatenções e injustiças, quem não desista, como acontece com o protagonista. Convicção e prática que não o impedem de analisar bem a questão, como numa entrevista já antiga, mas que se mantém válida: “As pessoas vêem o Fado [de Coimbra] um pouco como vêem os monumentos da cidade – está ali e vamos lá quando nos apetecer, porque aquilo é nosso. E há muita gente que nem sequer lá vai”.