Imagens do arquivo de família de João Cristóvão Leitão lembram-lhe um texto de Borges. Pouco a pouco, transforma Averróis no seu avô, o seu avô em Borges e Borges em si (João). Neste movimento, torna-se cada vez mais difícil olhar para qualquer um deles sem, também, entrever todos os outros.
A vídeo-instalação nasce do encontro de João Cristóvão Leitão com imagens do seu arquivo de família. Nele, inúmeras imagens revelam a copresença da criança que foi com um indivíduo que mal chegou a conhecer: o seu avô Aníbal. Ao olhar estes fragmentos de realidade, apercebe-se de que, por mais esforços que faça, é incapaz de lembrar a textura da sua voz. É, então e no repetir deste exercício de resgate invariavelmente fracassado, que descobre, não sem alguma melancolia, que poucas ou nenhumas são as memórias – pessoais, directas e não mediadas – que guarda deste homem, ao qual, segundo lhe dizem, muito se assemelha. Não obstante, quanto maior é a consciência da sua ignorância em relação a este incógnito sujeito, maior é a vontade que em si surge de o tornar familiar e íntimo; maior é a vontade que em si surge de tornar esta figura o centro de toda uma investigação artística.
É diante deste paradoxo – o do querer aceder a algo que, à partida, se encontra vedado a quem o procura – que se lembra de Borges e do seu conto A Busca de Averróis (1947). Nele é narrado o momento em que o estudioso árabe muçulmano que cede nome à narrativa borguesiana (1126-1198) – movido pela intenção de comentar a produção literária de Aristóteles – se depara com uma contrariedade filológica impossível de ser ignorada.
Importa referir que a perplexidade sentida por Averróis perante a dificuldade em traduzir tais palavras para o seu idioma, o árabe, foi, historicamente, um facto e não um mero artifício diegético fruto da imaginação de Borges. No entanto, é esta circunstância real que serve de mote não só para, no decorrer da narrativa borguesiana e através dela, se indagar sobre a (im)possibilidade de a essência das coisas poder ser conhecida, mas também para se problematizar essa mesma (im)possibilidade mediante o estabelecer de relações entre a demanda protagonizada por Averróis (o real?, o ficcional?, ambos?) e aquela que é encetada por João Cristóvão Leitão.
Se Averróis procura conhecer Aristóteles através das palavras, João Cristóvão Leitão procura conhecer Aníbal Cristóvão através de imagens. Se Averróis procura traduzir um homem de quem o separam 14 séculos, João procura traduzir um homem de quem o separam umas quantas décadas. Se Averróis procura recuperar o significado de termos que remetem para práticas artísticas miméticas que eram, à data, estranhas ao mundo muçulmano, João procura recuperar aquilo que as imagens para as quais olha não têm como revelar.
Assim sendo, será Averróis – e, por extensão, o próprio João – capaz de cumprir a tarefa a que se propõe? Será a sua tarefa – e, por extensão, a tarefa de João – exequível? Ou validará Averróis – e, por extensão, todo e qualquer tradutor (seja ele um tradutor de palavras ou, como no seu caso, um tradutor de imagens) – o provérbio italiano Traduttore, Traditor? Talvez ambas as demandas – porque exigem o estilhaçar anacrónico da linearidade temporal que deu origem àquilo que procuram – se encontrem, ontologicamente, fadadas ao fracasso. Porém, “[...] para se estar livre de um erro, acrescentemos, convém tê-lo praticado” (Borges, 1947: 607). Por isso, João toma a liberdade de, pouco a pouco, ir transformando Averróis no seu avô, o seu avô em Borges e Borges em João, preferindo acreditar que é através do erro e da falha que nos aproximamos da essência das coisas; porventura não exactamente da das que procuramos, mas da de outras que, talvez, não soubéssemos que procurávamos.