domingo, 19 de janeiro de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira


Torre dos Clérigos

Considerada por muitos como o ex-libris da cidade do Porto, a Torre dos Clérigos é uma torre sineira que faz parte da igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos, no alto da Calçada da Natividade (actual Rua dos Clérigos), situada no coração da Baixa do Porto. A igreja começou a ser construída em 1732, por iniciativa da Irmandade dos Clérigos, ficando concluída em 1749 e a torre em 1763. O projecto da Torre dos Clérigos foi aprovado em 1731 e, no ano seguinte, teve lugar a cerimónia de colocação da primeira pedra, isto depois de diversas diligências acabam por conseguir que lhe fosse dado um terreno no local,  junto do cemitério onde eram enterrados os enforcados e que ficava já fora de portas. Esta torre foi a última construção do conjunto dos Clérigos, dos quais fazem parte a igreja e uma enfermaria. Foi iniciada a sua construção entre 1754 e 1763, tendo em conta o aproveitamento do terreno que sobrara para a instalação da designada enfermaria dos Clérigos.  As obras arrastaram-se por vários anos, durante os quais o projecto inicial foi sendo alterado e adaptado. A Torre dos Clérigos, foi projectada e desenhada pelo italiano Nicolau Nasoni (1691-1773), que trabalhou em Siena, onde terá adquirido a sua formação de base. À passagem por Roma, seguiu-se uma estadia na Ilha de Malta, onde trabalhou para o grão-mestre D. António Manuel de Vilhena, vindo a conhecer aí também, Roque Távora e Noronha, irmão do Deão (líder do chefe do Colégio de Cardeais) da Sé do Porto, D. Jerónimo. Foi assim, com certeza, que Nasoni acabou por ser convidado para se mudar para o Porto, onde já estava em 1725, a trabalhar na Sé, edifício onde deixou a sua marca. O projecto inicial da Igreja e Torre dos Clérigos, sob encomenda de Dom Jerónimo de Távora Noronha Leme e Cernache a pedido da Irmandade dos Clérigos Pobres, previa a construção de duas torres e não de uma apenas, isto porque segundo alguns registos da época, começou a faltar verba e ainda a obra ia a meio. O seu arquitecto, Nicolau Nasoni, contribuiu durante muitos anos para a construção da grande Torre dos Clérigos sem receber nada em troca, o que só viria a acontecer alguns anos mais tarde, quando Nicolau Nasoni foi admitido como irmão, vindo a fazer assim parte desta Irmandade em reconhecimento  do trabalho prestado. De salientar que Nicolau Nasoni após a sua morte em 1773, aos 82 anos, viria a ser sepultado na cripta da Igreja dos Clérigos, pela Irmadade que anos antes o tinha admitido como membro. A construção da igreja colocava alguns problemas interessantes, a que Nicolau Nasoni soube responder com soluções criativas e inegavelmente eficazes. Uma das dificuldades maiores prendia-se com o formato do lote do terreno, longo mas estreito. Para tirar pleno partido desta situação, Nicolau Nasoni rejeitou a fórmula tradicionalmente usada em Portugal de colocar as torres na fachada e remeteu-a antes para as traseiras, libertando assim espaço na frente da igreja. De recordar que o projecto original incluía duas torres, solução depois substituída por uma só torre. Ao mesmo tempo, a inclinação da rua (hoje) dos Clérigos, confere uma grande verticalidade à fachada, efeito sublinhado pela rotação do seu eixo em relação à rua. Por fim, Nicolau Nasoni conferiu à torre enorme altura, 76 metros, e decorou-a com grande variedade de formas, atribuindo-lhe o protagonismo do conjunto. A conjugação de todos estes factores dá lugar a um incontornável efeito de monumentalidade.



A originalidade do projecto mantém-se no interior da igreja. Aqui, ao corpo rectangular da fachada segue-se a nave única de planta oval, solução rara no contexto da arquitectura portuguesa na época. Na verdade, a nave é composta por duas paredes separadas por um corredor. A parede exterior faz com que, quando vista de fora, a nave pareça um polígono alongado de lados menores arredondados. Pelo contrário, a parede interior corresponde a uma verdadeira elipse, verticalmente ritmada pela utilização de grandes pilastras de ordem compósita, entre as quais se abrem portas, janelas e altares. A capela-mor é retangular e liga o corpo da igreja à casa dos clérigos, por sua vez ligada à torre, último elemento desta progressão de volumes cada vez mais estreitos, acompanhando a definição do terreno. O granito profusamente decorado cobre a fachada principal e a torre, enquanto nas fachadas laterais é apenas usado para elementos estruturais (pilastras e entablamento), portas e janelas. Assim se estabelece uma hierarquia visual de volumes. No interior da igreja, a decoração é rica e abundante em efeitos policromos, conjugando-se a pedra com a talha dourada e a pintura. A torre toda ela construída em granito e mármore, com multiplicados campanários com doze sinos, alguns dos quais segundo fontes da época, pesando de "cem até duzentas arrobas". Estes primeiros sinos foram encomendados em Hamburgo e Braga, tendo sido o seu custo, com transporte, segundo registos da época de 790.477 reis. A Torre dos Clérigos em estilo vincadamente barroco, é  decorada com esculturas de santos, fogaréus, cornijas bem acentuadas e balaustradas. Constituída  por seis andares e 76 metros de altura, a que se tem acesso por uma escada em espiral com 240 degraus. Foi considerada à época da sua construção, o edifício mais alto de Portugal e até da Europa, excedendo as de Bristol, Utreque, Amburgo, Riga e Bolonha. A espessura das paredes do primeiro andar, em granito, chega a atingir os dois metros. Destacam-se as janelas abalaustradas  do último andar, este mais comprimido e decorado, e os quatro mostradores do relógio um em cada face. O primeiro andar apresenta uma porta encimada pela imagem de São Paulo, tendo por baixo, gravado num medalhão, um texto de São Paulo, na Carta aos Romanos que diz: "SALUTEM MARIAM QUAE MULTUM LABORAVIT IN NOBIS".



A Torre dos Clérigos mudou para sempre o horizonte da cidade do Porto, foi também ela palco de inúmeras histórias relacionadas com esta cidade e o quotidiano dos seus habitantes… Aliás, o autor deste projecto deixou marca inegável não só neste monumento como em toda a cidade, onde desenvolveu grande parte da sua obra. Devido a sua altura e por ser avista a cerca de dez léguas (50 Km) do mar, esta construção serviu igualmente de baliza ou marca para se dirigirem por ela todas as embarcações que entravam na barra do rio Douro, devido a velha Torre da Marca, expressamente destinada a esse fim, ter sido destruída em 1832 pela artilharia miguelista situada em Gaia, durante o Cerco do Porto. Terá contribuído também a Torre dos Clérigos, para ajudar os comerciantes a saber quando chegava ao Douro o “vapor da mala real”, uma embarcação da companhia inglesa  P. & O. (Peninsula e Oriente), que trazia de Londres dinheiro e letras de câmbio para pagar produtos que tinham sido exportados para Inglaterra. O sistema funcionava da seguinte forma; a Associação Comercial era avisada por telégrafo do dia previsto para a entrada na barra das embarcações, por sua vez fazia chegar a mensagem à Irmandade dos Clérigo, e com o consentimento da mesma,  mandava içar uma vara com duas bandeiras laterais com as cores da companhia maritima inglesa no alto da Torre, isto no tempo enxuto, porque em tempo de chuva as bandeiras eram substituídas por dois balões de folha de Flandres, pintados com as mesmas cores das bandeiras. Era o sinal da aproximação do barco, e assim os comerciantes sabiam  que podiam mandar os empregados para junto dos correios, a fim de receberem o mais depressa possível o dinheiro que vinha de Londres. Há registos de que no ano de  1862 numa noite de forte temporal, uma faísca derrubou a esfera e a cruz que encimam a torre, tendo sido reparada pouco depois. A Torre dos Clérigos ficou também conhecida pela sua meridiana, um engenho dotada com um sistema de pistola, cujo gatilho disparava sempre ao meio-dia, com uma pontualidade superior à dos poucos relógios da época. Ao meio-dia, o sol dava na lente, queimava o fio, disparava o gatilho e dava um tiro. O comércio sabia que era o sinal do meio-dia e fechava. Em 1917, serviu, como palco para uma das mais bem-sucedidas operações publicitárias da época, da autoria do publicitário Raúl de Caldevilla. Dois saltimbancos galegos aceitaram o desafio para escalarem a Torre dos Clérigos, pelo exterior, e terminarem a aventura tomando um chá acompanhando com umas bolachas tipo francês que estavam a ter dificuldades em entrar no mercado português. A partir daí o produto tornou-se num sucesso de vendas. De referir que esta foi uma das escaladas à Torre dos Clérigos entre muitas ocorridas antes e até aos dias de hoje neste monumento da cidade Invicta. Em 1918 foi enviado à Mesa da Irmandade dos Clérigos o ofício de 16/10 do Administrador do Bairro, devido ao clima vivido pelas consequências da Primeira Grande Guerra Mundial que só terminaria a 11 do mês seguinte, com as suas implicações em perdas humanas que abalaram muitas famílias da cidade. Dizia o documento: ”sendo prejudicial para a saúde pública que nas actuais circunstâncias haja motivo para deprimir o moral das Populações, manda sua Exª. o Sr. Governador Civil… que até segunda ordem, fiquem proibidos os toques dos sinos em cerimónias fúnebres…”


A Torre dos Clérigos está classificada pelo IPPAR  como Monumento Nacional desde 1910. Em 1995 foi inaugurado o actual carrilhão da Torre dos Clérigos e é o mais moderno de Portugal. Tem 49 sinos que foram fundido na Holanda e  pesam cerca de dez toneladas. Para accionar o mecanismo dos sinos atravez de um teclado que, para ser tocado, exige uma técnica que pode ser fisicamente esgotante. Este carrilhão é controlado por um computador, marcando as horas e debitando a música através de quatro processos. Está programado para tocar ao meio-dia e às 18:00, estando ligado a um relógio atómico, na Inglaterra ou na Alemanha e atravez do computador capta as ondas emitidas e organiza as horas a partir desses relógios. No ano de 2012, os mostradores do relógio da Torre dos Clérigos estão, finalmente, a marcar a hora certa. A anomalia no relógio tinha sido detectada com a mudança de hora de 2011 e desde então que se aguardava pelo arranjo do mítico relógio portuense. O problema foi resolvido com a substituição do ponteiro da face nascente, ponteiro este aparentemente deslocado por uma gaivota. Para além de marcar mal as horas, o relógio também ele ex-líbris da cidade do Porto, representava ainda um elevado risco para os transeuntes da zona, podendo a qualquer momento, com o vento, deixar cair o ponteiro. Esta reparação foi terminada em janeiro de 2012, numa última intervenção que permitiu ligar os mostradores ao mecanismo do relógio. Das empresas que contribuiram para o concerto foram a Unicer e a CIN, oferecendo tintas e ainda mil euros cada uma. O orçamento inicial para esta reparação era de 400 euros, mas constatou-se que a avaria não incidia apenas no ponteiro mas no próprio mecanismo do relógio. Este conserto implicou quatro visitas de alpinistas à torre, suspensos por cordas e cabos para a retirada e colocação do ponteiro danificado, o que fez aumentar o montante, acabando por ser quase vinte vezes superior ao esperado. Entretanto entre outras iniciativas com vista a angariar fundos, também, a editora Calendário das Letras, promoveu a venda de um conjunto de livros raros do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, durante a XVII Festa do Livro da Fundação Cupertino de Miranda, angariando verbas para esta obra. Em 2013, ano que assinalou os 250 anos de existência da Torre dos Clérigos, esta recebeu cerca de 430 mil visitantes, sendo o custo de entrada de 2 euros. A Irmandade dos Clérigos aproveitou o simbolismo da data para lançar um programa de comemorações de forma a valorizar e potenciar o monumento que é considerado por muitos, como o ex-líbris da cidade do Porto. No âmbito das comemorações a Irmandade dos Clérigos assinou um protocolo com a autarquia do Porto, com vista a implementar um programa de acção para a recuperação, requalificação, valorização e divulgação daquele espaço religioso, desenvolvendo uma série de actividades em parceria.  As obras nos Clérigos  num investimento total de 2,6 milhões de euros, tendo sido comparticipados em 1,7 milhões pelo QREN (Quadro de Referência Estratégica Nacional), cabendo os restantes 800 mil à Irmandade dos Clérigos, com recurso a financiamento do programa Jéssica. O anúncio da comparticipação financeira, por parte da CCDR-N (Comissão de Coordenação da Região Norte), foi feito durante a cerimónia de apresentação pública da moeda de 2 euros comemorativa da efeméride, emitida pela Imprensa Nacional, Casa da Moeda, que decorreu junto à Torre dos Clérigos.



O presidente da Irmandade dos Clérigos, padre Américo Aguiar, mandou encerrar a Torre dos Clérigos durante 12 dias por razões de segurança em novembro de 2014, para a realização das obras de recuperação e renovação. Estas obras na Torre dos Clérigos, que tiveram como objectivo principal dar mais segurança a quem a visita, permitiram aos turistas ter uma melhor visibilidade sobre a cidade do Porto e perceberem, através de leitores de passagem, que edifícios conseguem dali visualizar. A reabertura da renovada Igreja dos Clérigos aconteceu no dia 12 de dezembro de 2014, pelas 12:00. A Torre dos Clérigos foi distinguida com o certificado de excelência 2014 do ‘site´ internacional de turismo e viagens TripAdvisor, depois das avaliações positivas dos visitantes referentes ao ano de 2013. A título de  curiosidade, ainda em 2014, durante as obras que decorreram na Igreja dos Clérigos, foram postas a descoberto numa cripta descoberta do século XVIII, mais de 20 sepulturas, das 15 sepulturas vistas, algumas pertencem ao clero, designadamente a bispos, devido à roupa, contudo, na cripta estão ainda mais sete ou oito sepulturas para retirar, as ossadas encontradas que incluiam; homens novos, mulheres, adolescentes e crianças, inclusive uma com 28 semanas de gestação, ficaram obviamente excluídas as hipóteses de serem do arquitecto italiano Nicolau Nasoni ali sepultado. O trabalho de antropologia forense para tentar encontrar naquelas sepulturas Nicolau Nasoni será feito por exclusão de partes, ou seja, perante todos os corpos ali depositados serão excluídos os do sexo feminino, bem como o dos homens mais novos, o trabalho é complexo, será feito em duas fases diferentes (reconstrutiva e comparativa) e deverá durar cerca de um ano. Estes trabalhos estão ser dirigidos pelo Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. O presidente da Irmandade dos Clérigos, padre Américo Aguiar, acredita que uma delas seja a do arquitecto Nicolau Nasoni que, há mais de 200 anos, projectou a Igreja e a Torre anexa. Visto que, no livro de óbitos da Irmandade se pode ler: "Nicolau Nasoni foi sepultado nesta igreja (dos Clérigos) sendo asestido (assistido) pela Irmandade como pobre e se lhe fizerão (fizeram) os três oficios (ofícios) como também o da sepultura".
A 11 de junho de 2015, a Irmandade dos Clérigos anunciou, ao fim de 252 anos, a abertura da Torre e Igreja dos Clérigos  em horário noturno, respondendo a uma vontade manifestada pelos turistas. A ideia é permitir que grupos de pessoas (mínimo de 25) possam desfrutar da vista da Torre dos Clérigos a partir das 19:00 e até às 23:30, mediante uma marcação prévia, isto porque o Porto tem poucos locais culturais disponíveis a partir das 18:00, dando assim o seu contributo à cidade, continuando a inovar na programação mas também rompendo com os tradicionais horários. Para breve está também a abertura do novo espaço de exposições dos Clérigos, com a "Colecção dos Cristos". Este espaço foi criado no âmbito das obras de renovação que foram realizadas em 2014, durante as quais foi descoberta a cripta na Igreja com mais 20 sepulturas. Vale a pena por tudo isto, uma visita atenta a este monumento nacional ex-libris da cidade do Porto.


Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".