segunda-feira, 29 de novembro de 2021

José Cid une os seus versos aos de Arnaldo Trindade e Natália Correia entre outros


Entre os óleos da mulher Gabriela Carrascalão, José Cid encontrou um quadro curioso: uma galeria de fantasmas. Mudos, de lábios cerrados e feições pálidas, não eram como os outros fantasmas que Cid acalentava, afectos à melodia, ao terror e ao amor. “Gabriela, já sei qual é a capa do meu álbum” ... mediante uma alteração. Ao pedido de Cid, a pintora rasgou-lhes a boca, para lhes devolver a vida — imortalizada no óleo que serve de capa a Vozes do Além, o 25.º álbum de estúdio do artista chamusquense.
 
No princípio era a morte, se o princípio significar 2020. Um ano em que Cid equilibrou dois fantasmas: em simultâneo ao luto, sentia crescer outro rugido dentro de si. Vinha de uma música extra-vida, que o perseguia já desde 1994, ano em que o grande público o via despido de preconceitos, apenas com um disco de ouro entre as pernas, num retrato hoje icónico. Em público, dividia-se entre coragem e caricatura — na intimidade, Cid equilibrava algo mais sensível.
 
“Tudo começou quando o produtor Rui Vaz me mostrou o poema ‘Um Dia’, de Sophia de Mello Breyner Andresen: 
Um dia, mortos gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.”
 
Voltaremos? Foi esse o móbil que norteou Cid, durante três décadas, numa demanda poética pelo ideal da reencarnação (à qual juntou a sua própria pena). “Comecei a juntar opiniões muito díspares, mas que levavam todas a um único sítio.” Ao compilar essa bibliografia, ancorou-a sobretudo em nomes do século XX: Natália Correia, Aurelino Costa, Manuel Lamas, Sérgio Nascimento ou Federico Garcia Lorca (cujos textos já havia cantado em 1998, num disco de homenagem). Faltava, contudo, pensar a matéria sonora. Rareava o tempo de contemplar e aflorar, que os anos 90, com uma agenda frenética, lhe interditaram.
 
Ao fim de 30 anos, pela força do confinamento pandémico, as Vozes do Além haviam finalmente cercado Cid — e foi então que se decidiram derramar sobre os Acid Studios de Mogofores, para semear um álbum prometido, do tamanho do futuro. Pelo caminho, encontrou novos colaboradores, como as bandas Ganso e Prana, que participam respectivamente nas faixas “Porta Fechada” e “Homem do Além”.
 
Vozes do Além é o seu quarto projecto de rock progressivo, após a obra-ensaio que compôs em 1975 para o Quarteto 1111, Onde Quando Como Porquê Cantamos Pessoas Vivas, o EP de 1977 Vida (Sons do Quotidiano) e o mitológico LP de 1978 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. Mas Cid renega essa publicidade fácil: “Prometi a mim mesmo que ninguém poderia, a não ser de ânimo leve, dizer que este álbum é semelhante a 10.000 Anos. Não é, não é, não é!”.
 
Cid e o produtor Xico Martins burilaram um som diferente, apesar de confluírem na fome por uma linguagem progressiva e uma liberdade jazzística. E volta a ser analógico por inteiro, o que exigiu desgravar faixas em velhas bobines: “Não houve um computador naquele estúdio!” Assim se enformou um limbo musical em três eixos: as teclas do sintetizador e do Mellotron, os refrães indeléveis e a vertiginosa potência vocal de Cid aos 79 anos.
 
Nesse purgatório, negoceia-se entre elegias fantasmáticas (“Reencarnar É Possível”, em co-autoria com Tozé Brito e Inês Menezes), baladas titânicas (o single “Vou-te Amar Para Além da Morte” ou “É Esta Alma Que Eu Tenho”, poema escrito pela amiga Maria Luísa Batista antes de falecer) e malhas onde a guitarra recrudesce sem pudor. Para Cid, o coração do disco está na faixa-título, uma propulsão rock sem limites - mas também no epílogo, “Maria de S. João”, dedicado à irmã homónima onde encontrou um amparo incondicional.
 
“Este álbum é conclusivo da minha vida, da minha carreira”, avisa Cid. O que significa isso? Nada temam, não é um ponto final. O músico está ciente do fim que espreita por entre as frestas — “mas não vou morrer. Nem pensem!” Sabe, como os poetas, que a morte é apenas um limite, uma lei de que alguns se vão libertando, por não recearem fixá-la com papel e caneta. Para José Cid, bastou usar a música que sempre esteve dentro de si.