domingo, 12 de julho de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira



Vista Alegre

Até princípios do século XIX, Portugal não possuía nenhuma indústria que fabricasse porcelana. Sendo esta muito apreciada em Portugal, a maior parte das peças deste material era importado quer da China no início e mais tarde de outros países da Europa, que entretanto foram descobrindo o segredo da sua produção. A porcelana, produto branco, impermeável e translúcido, constituída basicamente por uma mistura de argila, caulino, quartzo e feldspato.  
É no entanto num Portugal em crise, acabado de sair das Invasões Francesas, vivendo-se ainda a ressaca da Revolução Liberal de 1820 e sem capacidade para dotar o país com as estruturas necessárias ao seu desenvolvimento, que José Ferreira Pinto Basto (1774-1839), figura de destaque na sociedade portuguesa do século XIX, proprietário agrícola, comerciante audaz, que incorporou sabiamente o ideário liberal do século, tendo-se tornado o primeiro exemplo de livre iniciativa em Portugal, influenciado pelo sucesso da fábrica de vidro da Marinha Grande, decidiu criar uma fábrica de porcelanas, vidro e processos químicos. Começou por adquirir, em 1816 em hasta pública a Quinta da Ermida de Nossa Senhora da Penha de França, datada de 1693, perto da vila de Ílhavo à beira do rio Boco (embora muitos autores refiram por confusão como sendo junto da ria de Aveiro), região rica em matérias primas como, barro, areias brancas e finas, seixos cristalizados, elementos fundamentais para o fabrico de vidros e porcelanas. Após ter adquirido terrenos vizinhos, num total de quarenta hectares, lançou-se no seu projecto. No ano de 1824, José Ferreira Pinto Basto apresentou uma petição ao rei D. João VI para; "erigir para estabelecimento de todos os seus filhos, com igual interesse, uma grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos chimicos na sua Quinta chamada Vista-Alegre da Ermida". O respectivo alvará que autorizou o funcionamento da Fábrica da Vista Alegre foi concedido no mesmo ano de 1824, pelo rei, passando esta a beneficiar de; "todas as graças, privilégios e isenções de que gozam, ou gozarem de futuro, as Fábricas Nacionais". É então fundada em 1824, na Quinta da Vista Alegre, no início da 1ª Revolução Industrial, a primeira fábrica de porcelana em Portugal, que assume, por isso, num país sempre pobre em investimentos e em produção, marcado pela ausência de uma classe que se assumisse como motor de investimento, de industrialização e de modernidade. O fundador associa os seus 15 filhos, passando a fábrica a denominar-se Ferreira Pinto & Filhos. Cinco anos após esta concessão, a Vista Alegre recebeu o título de Real Fábrica, um reconhecimento pela sua arte e sucesso industrial. O seu início foi nessa época marcado pela produção de peças em vidro de grande qualidade, destacando-se as peças com relevos e ornatos lapidados ou gravados, bem como os delicados trabalhos de incrustação de medalhões. Nos primeiros períodos de laboração iniciaram-se com a produção do vidro e cerâmica "pó de pedra", face ao desconhecimento da composição da pasta de porcelana. Só uns anos mais tarde se viria a iniciar verdadeiramente a produção de porcelana mais aperfeiçoada. Essas primeiras peças produzidas pela Vista Alegre, eram caracterizadas por formas simples e uma decoração que revelava igualmente grande simplicidade, sendo muito influenciada pelo gosto dos seus proprietários e do público português de um modo geral.



A partir de 1832, a fábrica intensificou o seu trabalho e dedicou-se ao aperfeiçoamento da porcelana ali produzida, a designada pasta de porcelana. Com o objectivo de ultrapassar as dificuldades no que dizia respeito à produção dessa porcelana, Augusto Ferreira Pinto Basto (1807-1902), filho do fundador da empresa, realizou uma visita técnica à fábrica de porcelana francesa de Sèvres. Aí terá estudado as técnicas assim como a composição da pasta e obteve esclarecimentos que se revelaram fundamentais para a descoberta em 1832, por Luís Pereira Capote, funcionário da Vista Alegre, de abundantes jazidas de caulino a norte de Ílhavo. As primeiras peças em porcelana mais refinada, são produzidas a partir de então, a simplicidade e lirismo da sua decoração tem também a ver com o ambiente familiar e quase campestre da escola de pintura que se foi desenvolvendo na fábrica. Longe do Porto, Coimbra ou de Lisboa, a serenidade que se vivia em Ílhavo influenciou a estética das suas obras. Criou-se ali uma escola e uma tradição de pintura, que não era muito eficaz nas cenas mitológicas ou temas rocaille à moda de Fragonard, mas ganhou uma grande mestria nos motivos florais. A contribuição de artistas estrangeiros, tais como foi o caso de Victor Rousseau, foi importante, sobretudo para a criação de uma escola de pintura, ainda hoje famosa. Neste período da história da Vista Alegre, assinalam-se factos como o desenvolvimento de uma obra social, a introdução de decorações a ouro e temas com paisagens e delicadas flores, influências tipicamente francesas dessa época. Surgem as participações em certames como (Paris e Palácio de Cristal no Porto). Em 1851, a Vista Alegre participou na Exposição Universal organizada no Crystal Palace em Londres, e em 1867 recebeu reconhecimento internacional na Exposição Universal de Paris. No ano de 1852, o rei consorte D. Fernando II, visitou a fábrica da Vista Alegre, tendo sido produzida uma baixela completa para a casa real que lhe foi oferecida.  São produzidas na fábrica da Vista Alegre, peças em porcelana quer para sectores mais populares a par com outras mais requintadas, desde serviços de mesa, chá, café, os famosos paliteiros, vasos, conjuntos de toalete até às peças decorativas mais diversas. Pela sua fama e qualidade, a porcelana da Vista Alegre passa a fazer parte do quotidiano das classes burguesas mais abastadas em Portugal, sendo aconselhada nas publicações de usos e bons costumes do século XIX, aparecendo igualmente citada a sua presença em alguns romances de autores portugueses da época, exemplo, esta passagem do romance de 1878, "O Primo Bazilio", de Eça de Queiroz; "Prosperava com efeito! Não punha na cama senão lençóis de linho. [...] Tinha cortinas de cassa na janela, apanhadas com velhas fitas de seda azul; e sobre a cómoda dois vasos da Vista Alegre dourados!". 
Em meados de 1880 cessa a produção de vidro pela Vista Alegre, dedicando-se exclusivamente à produção de porcelana. Foi na fase da administração de Gustavo Ferreira Pinto Basto (1882-1909), que se iniciou a colecção de peças, as quais andavam "espalhadas" nas dependências da fábrica e que, assim, foram revalorizadas e organizadas. A Vista Alegre inicia também já no final do século XIX, a produção por encomenda para estabelecimentos comerciais da especialidade, de algumas peças e serviços de mesa, assim como embalagens destinadas á indústria farmacêutica.



Até ao final da I Grande Guerra Mundial, o período de brilho da fábrica da Vista Alegre foi ofuscado, pois as conturbações sociais encaminharam a empresa para grandes dificuldades. Contudo, o espírito introduzido pelo fundador e a manutenção da escola de desenho e pintura feita pelo pintor Duarte José de Magalhães, estimularam a reorganização e modernização da empresa. Na década de 1920 é promovida a transformação da empresa numa sociedade de quotas, passando a designar-se Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, Lda. No período de 1922 a 1947, registou-se uma enorme renovação artística da Vista Alegre, destacando-se a colaboração de artistas de renome nacional, tais como Roque Gameiro, Leitão de Barros, Raul Lino, Piló, Delfim Maia, João Cazaux  e outros. O artista  João Cazaux assume nesta época a função de professor e a direcção da escola artística da Vista Alegre. Em 1924, com a nomeação de João Theodoro Ferreira Pinto Basto como Administrador-Delegado, iniciou-se um período de ressurgimento, para além do crescimento e renovação na área industrial, também a nível criativo se verificou uma forte revitalização. Estilos modernistas como o Art Deco ou o Funcionalismo revelaram a capacidade de adaptação da empresa às mudanças sociais e estéticas do início de século. A 15 de dezembro de 1932 a Vista Alegre, foi feita Grande-Oficial da Ordem Civil do Mérito Agrícola e Industrial, Classe Industrial. No período que vai entre 1947 e 1968, a Vista Alegre realizou contactos internacionais, com a formação de quadros técnicos especializados e a aquisição da principal concorrente, a empresa Electro-Cerâmica e da Sociedade de Porcelanas. Passa também a Vista Alegre a produzir acessórios em porcelana para instalações eléctricas e laboratório.
As baixelas produzidas pela Vista Alegre são escolhidas por muitas instalações hoteleiras, clubes privados e também restaurantes, para brilharem nas suas mesas.  Esta escolha para equipamento de estruturas hoteleiras de apoio ao turismo é feita basicamente devido a três razões: a imagem de marca, a qualidade do produto, e por último o seu design/decoração. Foi instaurada a tradição da produção de peças únicas, como o serviço produzido para Sua Majestade Isabel II, rainha de Inglaterra, aquando da sua primeira visita a Portugal, a partir dai multiplicam-se as colaborações com artistas contemporâneos nacionais e estrangeiros como Jeannine Hetrau, entre outros. No ano de 1964 foi inaugurado o Museu Vista Alegre, expondo desde então ao público peças representativas do seu longo e rico caminho percorrido. Já na década de 1970 a Vista Alegre deu importantes passos na sua modernização tecnológica e prestou mais atenção à formação de jovens pintores.



É sabido que não há peça da Vista Alegre que não tenha a marca da casa. O que talvez não se saiba é que essa marca foi variando em função de quem ia assumindo a presidência do conselho de administração da empresa. Os verdadeiros apaixonados e coleccionadores das peças de porcelana da Vista Alegre, conseguem distingui-las e atribuem-lhes o respectivo valor, através das marcas e numeração, que cronologicamente, lhes foram sendo colocadas no momento do seu fabrico. No ano de 1983, é criado o Gabinete de Orientação Artística (GOA), dois anos depois, o Centro de Arte e Desenvolvimento da Empresa (CADE), com a finalidade de fomentar a criatividade e contribuir para a formação nas áreas de desenho, pintura e escultura. Nessa fase, nasceram as séries limitadas de peças de porcelana, chamadas de "séries especiais" e "peças comemorativas". Em 1985, devido ao grande interesse suscitado pelas peças da Vista Alegre, e à procura constante de inúmeros clientes, a empresa resolveu organizar um clube de coleccionadores, limitando-o rigorosamente a 2500 sócios. Estes recebem, anualmente, uma peça concebida especial e exclusivamente para eles. Já nos finais da década de 80, realizaram-se importantes exposições internacionais em locais como o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque ou o Pallazo Reale em Milão, contribuições decisivas para a divulgação e internacionalização da marca Vista Alegre. No ano de 1997 concretiza-se a fusão com o grupo cerâmico Cerexport, que originou quase a duplicação do volume de negócios da Vista Alegre, em especial nos mercados internacionais. Em maio de 2001, deu-se a fusão da Vista Alegre com o grupo Atlantis, cruzando-se novamente o vidro, agora também o cristal, com a história desta empresa.
É formado então o maior grupo nacional de utensílios de mesa e sexto maior do mundo nesse sector: o Grupo Vista Alegre Atlantis, que atua em diversas áreas. No ano de 2002 foi concluído um processo de reengenharia industrial, que permitiu aumentar a capacidade e volume de produção e a partir de 19 de janeiro de 2009, o Grupo Visabeira, lança uma OPA à Vista Alegre e adquire o controlo total desta marca. A parceria entre a Vista Alegre Atlantis e a IKEA em 2013, levou à implementação de uma unidade fabril em Aveiro que fornece a cadeia sueca de artigos para o lar. A empresa, pela sua história e tradição, mantém a mais emblemática das onze unidades industriais que compõem o grupo, produzindo cerca de 10 milhões de peças por ano, entre porcelana decorativa e doméstica. Em 2014 a Vista Alegre Atlantis, fez uma parceria com a dupla de designers David Raffoul e Nicolas Moussallem para a criação de peças da sua colecção, em 2015, uma vez mais fez parcerias com artistas de renome internacional, para a nova decoração de peças das suas colecções, como é o caso da portuguesa Joana Vasconcelos, Christian Lacroix e Oscar de la Renta.



Mais do que um espaço fabril, a Vista Alegre é hoje um conjunto arquitectónico de inigualável interesse, repositório de memórias sociais e artísticas fundamentais para a construção de uma identidade nacional. O aglomerado fabril, para além da fábrica propriamente dita, inclui ainda moradias construídas para os seus empregados com título vitalício, consoante o seu agregado familiar e necessidades, uma escola, creche, um teatro, instalações desportivas e um corpo de bombeiros. De referir que a corporação de Bombeiros Privativos da Vista Alegre, criada em 1 de Outubro de 1880, é o mais antigo corpo privado de bombeiros em Portugal. Foi também através dos bisnetos do fundador da Vista Alegre, que se introduziu em Portugal a prática dos desportos, em especial o futebol, trazida por estes de Inglaterra em finais do século XIX. Quem visita a Vista Alegre, pode deslumbrar-se ainda com um magnífico templo, um belo palacete e uma lindíssima e bem arborizada quinta. Ao longo dos seus 191 anos, a fábrica da Vista Alegre e mais tarde o seu museu, têm sido um lugar obrigatório de visita, ou, porventura de peregrinação, para muitos milhares de pessoas. Entre elas, contam-se muitas personalidades de relevo; nos livros de visitantes da Vista Alegre, que começaram a existir em 1909, figuram as assinaturas de representantes da nobreza, bispos e arcebispos, ministros portugueses, presidentes da república e diplomatas estrangeiros, entre outros. Devido à sua alta qualidade, as peças da Vista Alegre, nos dias de hoje, encontram-se presentes quer em colecções de famosos, quer de monarcas e governantes de praticamente todo o mundo, como a Casa Branca nos EUA, a Presidência da República portuguesa, entre outras mais. A Vista Alegre para além de ser líder de mercado em Portugal, possuir uma das melhores e mais bem equipadas fábricas de porcelana de todo o mundo, marcou positivamente todos os que nela trabalharam e continuam a trabalhar, tentando proporcionar-lhes as melhores condições para se sentirem motivados, através da promoção de diversas actividades culturais e recreativas. Hoje, os seus trabalhadores sentem orgulho por terem contribuído para o sucesso alcançado pela empresa. A Vista Alegre continua a desenvolver e preservar a porcelana feita e trabalhada à mão, honrando por isso a sua história e tradição. Contudo, devido à internacionalização da Vista Alegre, a manutenção destas características familiares e de envolvimento na cultura popular local, são cada vez mais difíceis de sustentar. O grande desafio para a Vista Alegre será, sem dúvida, manter o seu perfil de empresa organizada de modo familiar, profundamente enraizada na cultura e tradições populares da região de Aveiro, e, ao mesmo tempo, responder às exigências da economia mundial dos tempos actuais. Por toda esta aposta na inovação, qualidade e no design, em 2015 o júri internacional Red Dot Award, composto por 38 profissionais da área do design, concedeu o tão desejado selo de qualidade a dois produtos da Vista Alegre Atlantis. É por tudo isto, a Vista Alegre, uma instituição em Portugal e no mundo, sinónimo de excelência e inigualável qualidade.



Texto :
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".