domingo, 12 de janeiro de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira


Comboios Reais Portugueses

A criação de um tipo de carruagens de caminhos-de-ferro, que começaram a designar-se por "trens reais", data da segunda metade do século XIX. Tal não significa que, mesmo antes da viragem do século, não fossem construídas carruagens ou salões encomendadas pelos monarcas, numa antecipação da dotação das principais companhias ferroviárias europeias em disporem de composições especiais, preparadas e destinadas, para uso dos reis e imperadores no exercício das suas funções de Estado. Note-se que, os comboios eram motivo de grande atracção social, aos quais os próprios monarcas se encontravam associados, quer pelo lugar que ocupavam na hierarquia política, quer por via do imaginário dos viajantes de itinerários régios. Este último aspecto conferia às companhias ferroviárias um saber acumulado em função do contacto privilegiado com a casa real, o conhecimento de outros meios de transporte usados pelos reis (como os coches, berlindas, etc.) e um papel na escolha dos meios de transporte adequados às deslocações das comitivas régias (família real, conselhos de Estado, ministros e funcionários). Portugal não foi excepção, os primeiros desenhos deste tipo de carruagens destinadas a servir a família real portuguesa datam de uma Portaria aprovada em 13 de agosto de 1855. Os desenhos foram projectados pela Firma inglesa Brown Marshall & Co. Builders de Birmingham, para o Caminho de Ferro Central Peninsular de Portugal, Linha do Leste 1ª Secção. Embora os registos do material que compunha o primeiro Comboio Real Português sejam um pouco escassos e contraditórios, existem referências ao Comboio Real que circulou na inauguração do caminho de ferro em Portugal no dia 28 de outubro de 1856, onde viajou o rei D. Pedro V (1837 - 1861), com a sua comitiva, apesar de existir uma ilustração que mostra o que terá sido esse Comboio Real inaugural. Desse comboio faria parte a carruagem As 3, construída pela firma inglesa  William's, entrada ao serviço em 1856. Existem referências a carruagens Salão desta época de fabrico francês mas sem dados concretos, sabe-se que eram os Salões dos Ministros e da Direcção da Companhia. Carruagens estas que iram desaparecer num incêndio anos mais tarde nas oficinas de Santa Apolónia. A carruagem As 3 era ricamente decorada, dispunha de três eixos, um sistema de passagem entre carruagens, a iluminação era feita a azeite. Como todo o material ferroviário deste período dispunham apenas de freio manual. Esta carruagem, possivelmente com outras do mesmo tipo, faziam parte do Comboio Real da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, composição prevista por lei para o transporte do monarca e toda a sua comitiva nas suas viagens oficiais.  Composição esta que foi usada em diversas deslocações das comitivas reais durante algumas décadas. Usaram ainda este primeiro Comboio Real Português figuras da monarquia europeia que se deslocaram a Portugal como a rainha Isabel II de Espanha, o Príncipe de Gales Eduardo, e o rei D. Afonso XII de Espanha. A carruagem As 3 desapareceu num incêndio das Oficinas de Santa Apolónia em 1895, no entanto alguns estudiosos das questões ligadas ao caminho de ferro apontam para um outro incêndio ocorrido na década de 70 do século XIX. Deste veículo Real apenas restaram dois registos fotográficos conhecidos.



No entanto quando falamos do Comboio Real Português referimo-nos a uma composição ferroviária construída entre 1858 e 1877, formada pela locomotiva a vapor nº 1 D. Luiz, o Salão D. Maria Pia e a Carruagem do Príncipe. Trata-se da composição real histórica mais completa da Europa, uma vez que na maioria dos países europeus apenas restam algumas carruagens e certos países nem possuíam Comboio Real, utilizavam para o efeito carruagens das Companhias do caminho de ferro fretados para o momento especial. A carruagem Salão D. Maria Pia foi encomendado ao fabricante belga Compagnie Géneral de Materiéls Chemins de Fer de Bruxelas, sendo concluído em 1858. Terá sido oferecida pelo rei de Itália, Vítor Emanuel II (1820 - 1878), à sua filha D. Maria Pia de Saboia (1847 - 1911), em 1862, como dote de casamento com o rei D. Luiz I de Portugal (1838 - 1889). De referir que existem duvidas sobre se realmente terá sido oferecido pelo rei Vítor Emanuel II a sua filha Maria Pia de Saboia. Trata-se de um veículo de três eixos ricamente decorado, dividido em três compartimentos, compreendendo uma antecâmara, de serviço, com capacidade para quatro pessoas, um salão central/sala de estar para aias e ordenanças, capaz de acomodar com extremo conforto quatro a seis pessoas e os aposentos da rainha, integrando o quarto e uma sala contígua, com instalações sanitárias e sistema de água corrente. A decoração de todos os compartimentos é sumptuosa, de interior profusamente decorado a veludo encarnado e dourado, brocados de seda em tons creme e embutidos em madeira. Foi utilizada a seda e veludo para os revestimentos das paredes, alcatifa de desenho exclusivo e mobiliário de madeira propositadamente concebido para esta carruagem. O mobiliário é composto por poltronas, chaise loungues, bancos e mobiliário encastrado. As loiças sanitárias são de porcelana inglesa. A iluminação a azeite em plafonds, está presente em todos os compartimentos. A bitola é de 1668 mm. Exteriormente o Salão assemelha-se às antigas diligências puxadas por cavalos, tem dezoito janelas laterais (seis em cada compartimento) e cinco portas exteriores (uma num dos topos e quatro nos dois compartimentos mais pequenos, estas quatro têm anexas cada uma, uma pequena escada articulada em ferro, com três degraus forrados a veludo vermelho que se encaixam na carroçaria da carruagem, ficando quase imperceptíveis). As longarinas são de madeira preta e arestas douradas. No exterior, a globalidade deste salão assume a cor verde escura, adornada por vários frisos de madeira entalhada e dourada. Cada compartimento tem ainda dois brasões de armas reais, sendo os dois do salão central os maiores e com pormenores distintos dos quatro restantes. As cores predominantes do Salão são o verde e o preto, tendo também o dourado nos frisos e várias cores (vermelho, verde azul, bege etc..) nos brasões/armas reais. De referir que este material não dispunha originalmente de freios a vácuo, sendo sistema manual, tendo o sistema a vácuo sido adaptado, como no demais material da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, já em finais do séc. XIX. O material reservado a serviços de maior importância, como foi o caso dos veículos destinados ao Comboio Real, foram naturalmente os primeiros a ser equipado com este novo sistema de freio. Esta carruagem foi frequentemente utilizada em deslocações da família real, quer privadas quer oficiais, nomeadamente em inaugurações relacionadas com o caminho de ferro, tal como a Linha do Leste até à fronteira na região de Elvas em 1863. Esta carruagem Salão de D. Maria Pia, encontra-se actualmente preservada e exposta ao público no MNF (Fundação Museu Nacional Ferroviário) no Entroncamento, juntamente com o restante material que forma este Comboio Real.



A carruagem Salão do Príncipe foi oferenda de D. Maria Pia ao seu filho mais velho, o príncipe D. Carlos I (1863 - 1908), quando este completou 14 anos. Foi encomendada ao fabricante inglês Ibbotson Brothers & Co Limited, Lte, Sheffield, sendo concluído em 1877. A primeira deslocação ocorreu por ocasião da inauguração da Ponte D. Maria Pia no Porto nesse mesmo ano. É composto por uma sala, salão principal e um quarto de banho, profundamente nobre e cavalheiresco, em termos decorativos. É uma carruagem de três eixos, com três compartimentos, composta por uma antecâmara, um salão principal e uma divisão com instalações sanitárias, possuindo ainda uma varanda coberta numa das extremidades. A sua ficha técnica no museu faz o inventário dos materiais nela utilizados: ferro, cobre, madeira, vidro, seda, veludo, porcelana. Curiosamente esta carruagem, está adaptada com sistema de ventilação natural para suportar as temperaturas altas de verão do Alentejo, visto ter sido usada frequentemente nas viagens entre o Barreiro e Vila Viçosa. Em finais do século XIX este veículo, tal como o demais material da Companhia, passou a dispor de freio a vácuo, visto não o possuir de origem.
Faz parte deste conjunto um furgão que dispunha de cozinha para dar apoio a este Comboio Real. Esta composição terá sido o designado Comboio Real da Companhia do Sul e Sueste. Com a implantação da República, a 5 de outubro de 1910, todo este material foi resguardado de forma a evitar a sua destruição. Habitualmente este comboio era rebocado pela locomotiva D. Luiz nº 1 CFS. A locomotiva foi encomendada ao fabricante inglês Beyer Peacock & Co., Manchester, sendo concluída em 1862 para tracção do Salão  D. Maria Pia. Na Great London Exposition, nesse mesmo ano, a locomotiva foi exibida pelo fabricante, recebendo uma medalha de ouro. Locomotiva a vapor de via larga (bitola 1668 mm). Tem dois cilindros e três eixos, um deles motor, pavilhão descoberto e tender separado. Podia atingir os 80km/h, desenvolvendo um esforço de tração de 3.000Kg. É uma locomotiva de série única. Adquirida no reinado do rei D. Luiz, por esse motivo foi baptizada com o nome do rei D. Luiz I, tal como era comum nessa época, as locomotivas serem designadas por nomes e por números. Esta locomotiva adquirida para a tracção do Comboio Real pela Companhia Inglesa - à época a explorar os Caminhos de Ferro do Sul, serviço que efectuou até 1910. Implantada a República, a 5 de outubro de 1910, passou a traccionar comboios suburbanos na Linha do Sul, sendo definitivamente retirada de serviço em 1923. Inicialmente este comboio era formado apenas por esta locomotiva e pelo Salão D. Maria Pia. Existiu ainda uma outra carruagem que fazia parte muitas vezes desta composição, da qual não se encontraram registos técnicos até ao momento. Sabe-se que era um veículo com ampla plataforma aberta num dos extremos, foi uma carruagem utilizada também pela família Real portuguesa em muitas das suas deslocações no país e estando presente em algumas inaugurações. Deste veículo restam apenas registos fotográficos onde ela aparece frequentemente, não se conhece até ao momento o seu destino. Foi neste Comboio Real que D. Carlos I (1863 - 1908), viajou pela última vez, juntamente com a família real, até ao Barreiro antes do regicídio em 1 de fevereiro de 1908. Foi ainda neste comboio que o então rei D. Manuel II de Portugal (1889 - 1932), viajou ao norte de Portugal em novembro de 1908. Este Comboio Real Português, excepto a carruagem da ampla plataforma aberta desconhecida, começou por estar exposto na antiga Secção Museológica de Santarém, desde 5 de outubro de 1979. Passou mais tarde para o MNF (Fundação Museu Nacional Ferroviário) no Entroncamento onde se encontra e pode ser visitado. Esteve presente em 2010 na Exposição Viagens Reais Europeias, em Utrecht na Holanda, evento do qual resultou o processo de conservação e restauro a que foi sujeito e integralmente financiado pelo Spoorwegmuseum.



Em 1888 é feita uma encomenda em nome do rei D. Luiz I à companhia norte americana Wason Manufacturing Car Works Company of Springfield, Mass. de duas carruagens luxuosas para formar um novo e moderno Comboio Real, denominadas à época de "Sleeping" e "Dinner-car", muito ao estilo das carruagens Pullman fundada por Georges Mortimer Pullman, que eram a grande novidade à época nos EUA. Estes dois veículos encomendados pelo rei D. Luiz I seriam por isso muito idênticas às típicas carruagens Pullman que circulavam nos EUA. Esta nova composição chegará a Lisboa, vinda de Nova Iorque, em dezembro de 1888, chegou desmontada e encaixotada, para ser depois montada nas Oficinas dos Caminhos de Ferro do Norte e Leste em Santa Apolónia, ficando pronta em 1889. Embora haja pouca informação sobre este material, há registos da época que referem serem dois veículos luxuosos, que juntos eram um palácio sobre rodas, que depois de montados, apenas fizeram uma viagem de experiência entre Sintra, Póvoa de Santa Iria e Lisboa. Segundo ainda esses registos da época, seriam pintadas de branco, mediam 17 a 19 metros de comprimento, os interiores em mogno de vários tons, tudo com extremo luxo e requinte. Dispunham de varandins aos topos, estes veículos eram equipados com tampões de choque, tal como   restante material da companhia e como grande novidade eram assentes em boggies, num modelo tipicamente americano. Como curiosidade estes veículos foram as primeiras carruagens a utilizar boggies que circularam em Portugal e muito provavelmente as primeiras na Península Ibérica. O custo total destes dois veículos foi de 18,000 contos de reis. Destes dois veículos Reais de fabrico norte-americano, não se conhecem registos fotográficos, nem registos na CP, dada a sua existência efémera, excepto a foto do tipo de boggie que as equipava.
No dia 9 de março de 1889 estes dois veículos luxuosos foram totalmente consumidos por um grande incêndio ocorrido nas oficinas de Santa Apolónia. Diversos registos da época referem que neste incêndio ficaram igualmente destruídas três carruagens pertencentes ao primitivo Comboio Real, o Salão dos Ministros e da Direcção da Companhia que eram de fabrico francês, já referidas anteriormente.   



Logo após a destruição destas duas luxuosas carruagens do Comboio Real Português, o governo da época, através da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, não perdeu tempo em encomendar uma nova composição para a sua substituição em outubro de 1889, já no início do reinado de D. Carlos I, seria o último Comboio Real Português. Este Comboio Real da CP ou "trem real", referido por Augusto Vieira da Silva (1869-1951), foi criado por volta de 1890 e era constituído pelos três salões reais originais fornecidos pela casa Désouches David. Esta nova composição Real era toda ela muito influenciada e ao estilo das carruagens da CIWL fundada por Georges Nagelmackers. Sendo constituída a composição por três Salões, nomeadamente: o Salão Real, o Salão dos Ministros e o Salão Restaurante. Medindo cada carruagem 18 metros de comprimento, compreendidos entre as plataformas abertas de varandins a cada extremo. Exteriormente estas carruagens eram pintadas de verde escuro com apontamentos dourados e vermelhos. Os rodados eram dois boggies, já equipados com freio a vácuo, que foi uma grande novidade na época, e fazia-se o acesso entre os veículos pelas plataformas abertas. Todos os veículos estavam igualmente equipados com aquecimento. Estas carruagens que compunham a nova composição do Comboio Real Português eram de tal forma aprimoradas e luxuosas que, segundo registos da época, até o Imperador da Rússia, Alexandre III (1845 - 1894), terá encomendado à mesma casa francesa veículos com caracteristicas muito semelhantes para seu uso. Segundo os registos da época em anexo, estas carruagens eram de um luxo extremo, decoradas com madeiras de carvalho esculpidas em estilo Luís XV, medalhões pintados nos tectos, usando os mais ricos tecidos. Todas as carruagens eram iluminadas por dois lustres em bronze dourado e cinzelado no tecto composto por quatro candeeiros a azeite sistema mecânico Carcel, cada um, de 120 velas. Os interiores dos compartimentos dos aposentos reais eram revestidos a madeira de Mogno lacada e cetins, o mobiliário requintado composto por canapés-cama com coxins estofados  e espelhos lapidados. Todas as carruagens dispunham de casa de banho com água corrente. A carruagem restaurante estava equipada com uma cozinha com fogão a carvão e todos os utensílios e equipamentos, onde se podiam confeccionar as refeições, as paredes da cozinha, bem como da dispensa e do corredor para serviços eram forradas a Lincrusta Welson. O compartimento de sala de jantar era mobilado com uma grande mesa com cadeiras de carvalho e assentos de palhinha dourada e aparadores de carvalho em talha. As janelas eram guarnecidas de estores de tafetá em seda verde clara. Também dispunha de um furgão para colocar as bagagens e restantes mantimentos. O novo Comboio Real Português era um verdadeiro Palácio Real sobre rodas. Em 8 de dezembro de 1890, notícias da época referem a chegada no comboio Sud Express, do engenheiro da casa construtora deste novo material, o Sr David, para assistir aos trabalhos de chegada e testes deste novo material que aconteceria em 15 de dezembro. Material este que chegou de França por linha via Madrid, transportado provavelmente em zorras devido à diferença de bitola até Hendaye e em Irún depois colocado nos carris já em bitola ibérica. Ainda segundo registos da época as primeiras experiências oficiais deste novo material foram realizadas em 22 de dezembro de 1890 entre as estações de Santarém e Lisboa – Rossio. Este tipo de "trem real" evoluiu desde o tempo de D. Luiz I, dado que se adaptou às novidades introduzidas nos caminhos-de-ferro pelos construtores das carruagens de conforto e luxo e carruagens restaurante da época como (Georges Mortimer Pullman e Georges Nagelmackers) fazendo com que o Comboio Real da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, tivesse nos finais do século XIX uma arquitectura interior muito bem estudada, além de uma "ornamentação luxuosa". Foi utilizado pela família real portuguesa, para diversas deslocações em Portugal e para Espanha, como os registos das notícias da época relatam. Foi utilizado igualmente, entre muitas deslocações reais, na primeira viagem política e turística visita que D. Carlos I realizou à Europa em 1895. Segundo ainda esses registos da época, a comitiva partiu três semanas antes, ao meio-dia de 2 de outubro, em comboio expresso, que incluiu este Comboio Real, da estação do Rossio. Como episódio curioso desta viagem, pela primeira vez, uma locomotiva ia de Lisboa ao Entroncamento sem parar, a viagem até ao Entroncamento demorou mais de duas horas. Já em terras de Espanha, durante a noite rebentou um tubo na caldeira da locomotiva. Atrasaram-se cerca de hora e meia, chegando a San Sebastian pelas três da tarde do dia seguinte, bastante enfarruscados e sem água para se lavarem. Os encarregados da carruagem real tinham-se esquecido de encher os depósitos dos lavatórios. Este comboio foi usado igualmente nas deslocações das visitas de monarcas a Portugal como em 1905 a do Kaiser Guilherme II da Alemanha (1859 - 1941), que o terá utilizado para fazer algumas deslocações, nomeadamente entre Lisboa e Sintra.



Com a implantação da 1.ª República, os novos governantes retiraram o nome de "trem real" ao comboio destinado ao chefe de Estado, pelo facto de Portugal passar a ser uma República, cuja representatividade era assumida por um Presidente da República. A mudança de nomes das coisas era uma atitude normal, dada a natureza política do novo regime que se implantara. Como os caminhos-de-ferro passaram a ter cada vez mais importância nos transportes portugueses, o Presidente da República e os Ministros usavam-no, tal como os monarcas, nas suas deslocações. Esta composição especial constitui, por isso mesmo, um comboio de interesse cultural na história e na museologia ferroviária portuguesa, pois representa um emblema da actividade ferroviária da nação portuguesa, marcada pela acção superior da organização das deslocações das altas individualidades do Estado, acto que era resolvido pela casa civil do Chefe do Estado e pelo governo em ligação estreita com a administração dos Caminhos de Ferro de Portugal. A composição inicial não devia ter sofrido grandes alterações entre 1910 e 1930, excepto ter deixado de ter os varandins originais, passando estes a serem fechados, por essa altura  será instalado o sistema de iluminação eléctrica e passa a incorporar novas carruagens. Como curiosidade, não há referências ao destino de todo o rico acervo decorativo original destas carruagens. Nos anos 30 esta composição sofre uma remodelação de organização interna, sendo decoradas ao estilo art déco tal como o desenho de exterior é totalmente alterado. Em 1930, a CP adquire um salão especial à empresa Linke Hoffmann Busch Brauschweig, para servir de Salão Presidencial ou do Chefe de Estado. Esta carruagem estava equipada com cozinha, um quarto e respectivo wc e outras dependências. Na mesma época terá sido incorporado um furgão construído pela Baume & Marpent, Hainaut, destinado ao transporte de bagagens. Por volta da data da Exposição do Mundo Português de 1940, e talvez por causa dela, os três veículos Désouches David, foram transformados e remodelados uma vez mais, interna e externamente para o formato e gabarito do referido salão Linke Hoffmann Busch Brauschweig, de modo a formarem uma composição mais uniforme. Talvez na mesma época terá sido incorporada uma carruagem de 1ª classe, adaptada às funções públicas, a qual viria a ser designada por Carruagem dos Jornalistas nacionais e estrangeiros. Esta carruagem revela uma arquitectura interior diferente, quanto à função e estatuto social, dispondo de um corredor de passagem longitudinal de acesso aos sete compartimentos e lugares de assento. Pertencia a uma série de três carruagens, todas elas semelhantes, construídas em 1930 pela empresa Nicaise & Delcuve. Este comboio renovado manteve-se em actividade entre 1940 e os inícios da década de 1970, tendo servido os Presidentes da República do Estado Novo, como Óscar Fragoso Carmona (1869 - 1951), Craveiro Lopes (1894 – 1964) e Américo Thomaz (1894 - 1987). Apesar de a partir dos anos 50 e 60 se encontrar desactualizado e circular apenas com a velocidade máxima de 100 km horários, este comboio tinha vantagens inerentes à dignidade do Chefe de Estado, pois mantinha um luxo interno, onde o desenho modernista e art déco prevaleciam e uma cor azul de RAL, cujo significado era adequado à imagem de um comboio especial dos "anos dourados" dos caminhos-de-ferro. Por outro lado, servia os interesses dos negócios estrangeiros do país, destinados a receber comitivas governamentais ou servir durante as viagens dos Chefes de Estado de outros países, como aconteceu na visita do presidente do Brasil João Café Filho em 1955 e com a rainha Isabel II da Inglaterra, na sua jornada de 1957, altura que visitou Portugal, tendo utilizado o Comboio Presidencial. A tracção inicial do comboio presidencial era feita por locomotivas a vapor, a partir de 1949, também se usaram locomotivas a diesel para a sua tracção. Como curiosidade o encontro entre Franco e Américo Thomaz, no Douro Internacional, em dezembro de 1964, teve como tracção inicial, na Linha do Norte, uma locomotiva eléctrica, a n.º 2252.



Quando este comboio deixou de servir o Estado português, as carruagens presidenciais foram guardadas em cocheiras da CP, ficando dispersas pelo país, algumas mesmo praticamente deixadas ao abandono e com isto degradaram-se substancialmente. A carruagem Salão Presidencial destinada aos Ministros foi adaptada a comboio-socorro durante cerca de trinta anos. Com a actividade museológica de Armando Ginestal Machado foram protegidos o Salão Presidencial do Chefe de Estado (Syf 5) e o Salão Restaurante (SRyf 2). O restauro dos veículos afectos ao comboio presidencial constou de candidatura ao Programa de Intervenção do Turismo (PIT) submetida ao Turismo de Portugal em outubro de 2009, bem como ao QREN-Programa MaisCentro – Rede para a Competitividade e Inovação, em junho de 2010. Tendo as referidas candidaturas sido aprovadas foi possível dar início ao restauro dos veículos. O Salão Presidencial destinado aos Ministros (Syf 4), adaptado a comboio-socorro, já em fim de serviço útil e restantes componentes deste Comboio Presidencial (Salão Presidencial - Syf 3; carruagem de 1.ª classe – A7yf 704; furgão, da fábrica Baume & Marpent Dyf 408), foram recuperados, restaurados e conservados do ponto de vista técnico, mecânico e artístico, de modo a proceder à organização do comboio segundo as suas valências e valores ferroviários, culturais e turísticos. Depois de algumas incertezas consagrou-se o restauro integral das cinco carruagens e do furgão que chegaram a incorporar este "trem", solução essencial para a melhor compreensão e interpretação do comboio. O objectivo do projecto foi resgatar (recuperar os equipamentos integrados como destino e móveis), conservar e reintegrar das duas designadas "carruagens-múmia" (em melhor estado de conservação), interessantes do ponto de vista histórico, de design técnico e estético, para constituírem o Comboio Presidencial, de valor histórico, mas associando-as ao universo de toda a composição, conferindo-lhe também um valor de turismo ferroviário. Actualmente a Fundação Museu Nacional Ferroviário, em cooperação com outras entidades parceiras, realiza com alguma frequência vários passeios turístico-culturais a diversas regiões do país nomeadamente na linha do Douro.



Como operavam outras companhias de caminhos-de-ferro em Portugal havia diferenças nos Comboios Reais dessas companhias, em relação à CP. Não fazendo parte de um Comboio Real oficial, mas tendo sido usada para esse fim, existe a composição de duas carruagens salão de via métrica. A carruagem salão SEfv 4001 (MD 1), que foi construída na Bélgica, nos Ateliers Germains, em 1905 e adquirida pelos Caminhos de Ferro do Estado – Direcção do Minho e Douro. Esta carruagem de via métrica (1 metro de bitola), com exterior em chapa, dispondo de varandins abertos aos topos,  e tendo iluminação a acetileno, freio a vácuo.
No seu requintado interior, destaque-se o revestimento das paredes em pele acolchoada, os vidros das janelas e os espelhos em cristal, as cortinas em brocado, os estofos das poltronas de veludo com coberturas em linho e o pavimento revestido a alcatifa sendo a iluminação a acetileno. As instalações sanitárias possuem lavatório e sanita em faiança, decorada com motivos florais. Foi utilizada para fins oficiais, como por exemplo, em 1906, aquando da inauguração do primeiro troço da Linha do Corgo, e, em 14 de julho de 1907, pela rainha D. Amélia de Orleães, esposa do rei D. Carlos I, aquando da sua deslocação na Linha do Corgo às termas de Pedras Salgadas na inauguração do lanço entre esta estância termal e Vila Real. Vindo a fazer parte igualmente da mesma composição, a carruagem-salão SEyf 201/N.º 1801 (CN 2), foi construída pela empresa Carl Weyer, Dusseldorf, em 1906, tendo sido adquirida pela Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Esta carruagem igualmente de via métrica, com exterior em madeira, dispondo apenas de um varandim aberto num dos topos e freio a vácuo.
O interior, a carruagem apresenta dois compartimentos com o total de 18 lugares, sendo decorada com embutidos de madeira representado paisagens, a iluminação era feita também a acetileno. Os estofos dos sofás e cadeiras são em pele, os vidros das janelas em cristal, sendo o pavimento revestido a alcatifa. Possui também instalações sanitárias com duas divisórias: numa situa-se o lavatório e na outra a sanita, ambas em faiança ornamentada com motivos florais. Foi igualmente utilizada esta carruagem Salão, para fins oficiais. Uma das figuras de relevo que nela viajou foi o rei D. Carlos I aquando da sua deslocação Linha do Corgo às termas de Pedras Salgadas em 14 de julho de 1907. Esta composição encontra-se preservada, sendo possível a sua visita, na Secção Museológica do Arco do Baúlhe.



Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".