terça-feira, 14 de março de 2023

Entrevista - Ivo Canelas protagonista de “Todas as Coisas Maravilhosas”



O "Cultura e Não Só" (CNS) esteve à conversa com o actor Ivo Canelas a propósito da peça “Todas as Coisas Maravilhosas” em cena no Estúdio Time Out, em Lisboa, até ao final do mês de Abril.

Um espectáculo produzido pela H2N, que é uma adaptação do original de Duncan Macmillan, onde somos levados pelo talento do Ivo Canelas a percorrer temas do nosso quotidiano com um especial enfoque nas questões da saúde mental 

CNS - Como é que surgiu o desafio para fazeres esta peça?
Este foi um desafio do Hugo Nóbrega, produtor da H2N, que viu a peça num festival francês feita pelo actor original Johny Donahoe e escrita pelo Duncan Macmillan, chamada em inglês Every Brilliant Thing.

O Hugo convidou-me em 2019 e assim que li o texto achei-o muito tocante e destabilizou-me de uma forma muito orgânica, no entanto, não tinha bem a certeza se o material seria piroso, porque também não sabia o que isto era.

Depois fiz a adaptação e tradução com a Margarida Vale Gato, e o desafio do próprio Mcmillan é que a tradução e adaptação seja feita para a realidade de cada país onde se passa o espectáculo de forma a que a empatia e a identificação aumente.

Em vez de ser um objecto teatral sobre um inglês em que toda a sua vida é inglesa e as músicas que ouve são anglo-saxónicas, todas as referências no espectáculo são portuguesas.

CNS - Em relação a essas referências portuguesas que estão na peça, qual o processo para chegares até elas?
Foi por tentativa e erro, fui fazendo várias playlists até acertar naquelas que o público pode presenciar.
Andei a explorar fado, tentei manter algumas músicas anglo-saxónicas, mas não resultavam bem, foi também um trabalho de memória relativamente ao que se ouvia em cada época retratada e encontrar algo que fosse tocante o suficiente para toda a gente não podendo agradar a todos, sem perder aquela capacidade de ser nicho e de se puder dizer “é a minha música”.

CNS - Numa entrevista referiste que a adaptação portuguesa não é tão cerebral como a peça britânica, podes explicar-nos o que é que isso quer dizer?
Vi o espectáculo no HBO Max, o tempo da peça deles é diferente, porque tem cerca de uma hora, enquanto a nossa tem perto de uma hora e trinta minutos, e quando vi, senti uma diferença energética muito grande.

O Duncan Macmillan é genial a improvisar, é um performer talentosíssimo, o texto está lá todo, mas eu acho que nesta versão fomos mais fundo, sem querer com isto dizer que é melhor ou pior.

Tem também que ver com facto de eu gostar de perder-me na realidade que é criada ali, ver como os corpos reagem em conformidade e que o espectador não fique a pensar que o que está a ver é tudo a fingir.

CNS - Como te preparaste para este papel?
A primeira fase é sempre a reacção do corpo à primeira leitura e ao material, e foi uma reacção muito forte e física, a minha energia mudou muito.
Depois tive duas linhas de combate muito distintas, uma foi a apropriação do material e do texto, por ter tantos números juntamente com o texto, a constante interacção com as pessoas que gera uma alteração no material, houve um lado técnico dantesco de saber o material o suficiente para haver alguma interactividade com o público.
Em seguida, houve um trabalho com a SOS Voz Amiga, que estiveram sempre prontos a partilhar tudo o que é este universo do ponto de vista de quem recebe chamadas complicadas de pessoas que precisam de conversar e estão numa solidão muito grande. Este foi um lado que me permitiu dar um salto de confiança na forma como lidava com o material.
Tive depois duas semanas de improviso, com colegas e amigos, em que a sala devia ter 50 ou 60 pessoas, para eu treinar este embate da interacção com o público que é o que determina o espectáculo e a sua qualidade.

CNS - A organização da sala e do público é muito curiosa, qual a razão por detrás desta disposição?
É uma proposta do McMillan, a sala deverá ter esta disposição oval ou em circunferência para conferir uma maior democracia em vez de ter um actor num palco à italiana, dois metros acima do público a contar uma história lá de cima.
Simula esta coisa mais democrática onde estamos todos à mesma altura, destrói a ideia de espectáculo, aumenta a confusão, e aumenta-a para o lado de terapia de grupo onde estamos todos em circunferência com alguém no meio a partilhar.

CNS - Quais as coisas mais inusitadas que já te aconteceram durante a peça?
Salvo duas ou três pessoas que não estavam disponíveis para estarem no espectáculo, e demonstravam ostensivamente ao olharem para o telemóvel ou estarem a falar, e a quem eu pedi para saírem, a interacção com as pessoas tornou-se para mim uma espécie de memória, tenho dificuldade em distinguir alguns desses momentos
O que aprendi é que na improvisação não existe a palavra “Não”, não posso ter nenhum pressuposto daquilo que as pessoas/personagens vão falar, as situações mais profundas aconteceram de pessoas que chegaram lá e fizeram o que era mais ou menos suposto dentro do seu ponto de vista e da sua história de vida.
Houve dias em que todos fomos projectados para zonas de humanidade e complexidade que não têm explicação, houve uma vez um senhor que fez um discurso que deve ter durado 10 minutos, foi das coisas mais profundas e tocantes que ouvi na minha vida, entrecruzando a sua vida com a dos personagens, foi algo mágico, cumpriu todas as regras do teatro e fez o que este espectáculo se pressupõe a fazer.

Neste espectáculo está sempre tudo certo, porque tudo é humano seja um personagem que vem animado, ou que não fala, ou que está triste, porque a humanidade contem tudo.

CNS - É essa constante incerteza que ainda te mantém interessado em fazer este espectáculo?
Isso, a temática e o feedback, mas sem duvida o facto de este espectáculo ter actores diferentes todas as noites o que traz sempre um ponto de vista novo, exige de mim uma grande flexibilidade e faz com que me mantenha interessado.
A temática da depressão, suicídio, estratégias mentias de sobrevivência, são temáticas pelas quais tenho muito carinho, tudo isto é material que me interessa, e interessa-me que a sociedade se interesse.

CNS - Este é um papel que exige muito de ti a nível mental e físico, como é o pós-actuação?
A minha maior dificuldade é dormir (risos), porque saio muito cansado, mas é algo gratificante, é uma espécie de intercâmbio de energia. Este é o meu maior desafio neste espectáculo, porque há algo que não consegui resolver energeticamente para descomprimir.

CNS - Existe um momento na peça em que pedes um conjunto de livros à audiência, qual foi o conjunto de livros mais surpreendente?
Já vi centenas de livros, mas houve uma sequência muito engraçada em que num dia tivemos dois livros, um sobre a importância do feminismo na nossa sociedade em par com um livro da Virginia Wolf. Noutra sessão saíram dois livros sobre gatos, e depois saiu em contraponto um conjunto sobre o Jorge Palma e um livro era sobre o erotismo e a intimidade na sociedade actual, e tentar encaixar estes temas na peça é um desafio.

CNS - Já foste ao Oceanário chocalhar as chaves?
(risos) Vou-te deixar esta resposta em mistério…

CNS - ... E alguém do público já te disse que foi chocalhar as chaves ao Oceanário?
Quanto a este ponto não, mas há outras referências na peça que as pessoas foram verificar, e eu arranjei esta frase em que digo “que se foi dito no teatro é porque é verdade”.
O que é incrível é que o texto provoca isso, como aquela referência à Beyoncé, eu verifiquei todas as referências da peça.
A forma como o Mcmillan recolheu as referências do material foi através dos alunos que lhe iam dando as suas coisas maravilhosas, e ele deve ter tido um leque brutal de coisas maravilhosas para seleccionar.

CNS - Neste momento quais são as tuas coisas maravilhosas?
Este bocadinho que tivemos a conversar, é uma coisa maravilhosa, e se retirarmos a conversa e tivermos só esta hora cada um no seu canto é uma coisa maravilhosa. Estarmos vivos e com saúde é também uma coisa maravilhosa.

CNS - A peça está esgotada até final de Abril em Lisboa…
Sim, estamos a trabalhar em levar a peça a outras localidades, e fechar a peça este ano.
Acho que este ano será o último ano, até por uma questão de gestão de energia e de disponibilidade minha, porque não há um milímetro de espaço para dúvidas minhas.
Por um lado, estou muito contente por não ter ainda terminado porque me desafia a manter a repetição fresca durante mais de 180 espectáculos.

CNS - O que podemos esperar do Ivo no futuro? Projectos na calha?
Tenho o “Causa Própria” na HBO, tenho também na Opto a série “Santiago”.
Existe um projeto com o pianista João Vasco e que mistura poesia e música, com o qual vamos fazer um tour por países africanos.
Um outro projecto com o Diogo Faro sobre o balanço entre o comediante e o activista.
Recebi ainda recentemente um prémio em França para a curta, “Um caroço de abacate”, realizador pelo Ary Zara e pela actriz trans Gaya de Medeiros, um filme louco que aborda uma relação romântica entre uma mulher transsexual e um homem heterosexual.

“Todas as Coisas Maravilhosas” em cena no Estúdio Time Out, em Lisboa.
Sessões previstas até final de Abril.

Entrevista conduzida por Rui Costa Cardoso em exclusivo para o "Cultura e Não Só".