quarta-feira, 20 de maio de 2015

CCB - Carta Branca a KALAF - 29 de Maio - 21h - Grande Auditório


“Gosto  de  complicar  a  minha  vida”,  afirma  Kalaf.  Nos  últimos  anos,  o  músico  tem estado particularmente  ocupado  a  trabalhar  à  frente  dos  Buraka  Som  Sistema,  mas, paralelamente, tem-se  dedicado  à  arte  que  tem  marcado  todo  o  seu  percurso:  a escrita.  Músico  e  poeta, Kalaf  é  também  cronista  no  Público.  Reuniu  essas  suas crónicas  no  livro  O  Angolano  que Comprou  Lisboa  (Por  Metade  do  Preço)  e  que  o próprio define como “literalmente uma declaração de amor a Lisboa”. O livro serviu de inspiração  ao  concerto  especial  que  preparou para o  palco  do  Grande  Auditório  do Centro Cultural de Belém, que este ano lhe entregou a Carta Branca.
Porque é que gosta de complicar a sua vida? Vejamos: para este espectáculo convocou um  baterista que  vive  em  Cabo  Verde,  um  guitarrista  que  reside  em  Angola  e  um contrabaixista que, apesar de viver em Portugal, tem sempre a agenda ocupada. Logo pela banda que lhe dará suporte é perceptível como se cruzam nacionalidades, culturas,experiências de vida díspares.
Partindo de músicas da sua Angola natal, como o semba e a  kizomba, Kalaf percorrerá histórias sobre  Lisboa,  onde  vive  há  20  anos.  Em  Lisboa  o  músico  encontrou  uma identidade verdadeiramente  multicultural.  O  que  é  que  encontra  nesta  cidade  que tanto  tem  que  ver também  com  Angola?  “Primeiro  a  língua  e  depois  o  número  de pessoas  que  a  praticam,  que a  falam,  que  a  usam”,  explica  o  músico.  “Lisboa,  ao contrário  de  Luanda,  ou  até  do  Rio  de Janeiro,  é  o  lugar  onde  toda  esta  realidade, trágica por um lado, mas enriquecedora  por outro, está escancarada. Aqui é possível ver  o  confronto  de  várias  realidades,  dos  angolanos  mais espampanantes  e extrovertidos,  tal  como  os  brasileiros,  aos  cabo-verdianos  e  guineenses  mais 
introvertidos, sem quererem chamar as atenções para si. No entanto,  todos têm algo para  dar  com a sua  riqueza  e  com  as  suas  características.  Se  estivermos  atentos  e sensíveis,  podemos  retirar algo  daqui  muito  bom.”  É  esta  realidade  multicultural  e plural que o  enriquece  e que tem distinguido o  seu  percurso  artístico.  “Os  Buraka não existiriam sem estes factores”, diz.
O  grupo  que  saltou  da  Amadora  para  alguns  dos  maiores  palcos  do  mundo  é  sem dúvida o seu projecto mais mediático. “Tenho muito orgulho naquilo que conseguimos construir e realizar com Buraka e sem dúvida que aquilo que eu aprendi no grupo, esta ideia  de  olhar  para  as  coisas  sem preconceitos e  sem  reservas,  é  algo  que  aplico  no meu  trabalho  fora  daquele  universo.  Isso  é algo  que  tenho  sempre  de  agradecer”, refere.
No entanto, não se espere deste  concerto que Kalaf preparou para o CCB uma réplica do que tem feito com os Buraka Som Sistema. Até porque o seu percurso artístico está muito ligado ao spoken word. As histórias e reflexões reunidas no livro  O Angolano que Comprou  Lisboa  (Por  Metade  do Preço)  vão  agora  ganhar  uma  dimensão  poética  e, claro, musical, onde o semba e a kizomba são protagonistas . Até porque a escrita de Kalaf,  mesmo  quando  as  palavras  não  servem  uma canção,  tem  uma  sensibilidade musical. “A minha escrita é muito influenciada pela música. Escrevo estando atento à forma  como  as  pessoas  ouvem.  É  algo  que  ainda  estou  a  tentar  aperfeiçoar, mas quando estou a escrever tenho essa preocupação, a de encontrar um ritmo”, explica. 
Existe  também  humor  nas  suas  palavras  e  o  título  O  Angolano  que  Comprou  Lisboa (Por Metade  do  Preço)  reflecte  essa  sensibilidade.  “O  humor  é  a  única  forma  de chamarmos  à terra todas  as  nossas  questões.  Sempre  que  perdemos  o  controlo  das nossas  vidas  a  única  forma  de voltar  a  reequilibrar  tudo  é  com  humor  e  quando escrevo essa  é uma das minhas preocupações, a de ter capacidade de nos rirmos de nós próprios, não só como indivíduo, mas também como colectivo.”



A  ideia de  reflectir  sobre  o  presente,  sobre o  que  de  mais  vital está  acontecer agora, seja a nível cultural ou social, é algo que tem enformado todo o percurso de Kalaf.  Há 20 anos, quando se mudou para Lisboa, foi o movimento rap que mais o marcou, como o  próprio  admite.  “Devo  muito à geração  do  Rapública  [primeira  compilação  de  rap português,  editada  em  1994].  Para  já, obrigou-me  a  olhar  para  a  minha  bagagem cultural, para o que trazia comigo e a pensar em questões de identidade. Quando se vive num país em que a maioria é negra e africana não se discute questões de quão africana é Lisboa, o quão Lisboa é convidativa e acolhedora para com essas minorias e também para com a sua própria história, que é uma história de mistura e mestiçagem bastante rica. O rap foi o primeiro lugar onde esses temas eram abordados e isso foi muito entusiasmante.”
Mistura  é  realmente  uma  palavra-chave  para  Kalaf.  Antes  ainda  dos  Buraka  Som Sistema terem recriado o kuduro, o músico já tinha tido um outro projecto com Branko, também ele fundador dos Buraka, no qual Kalaf explorou com profundidade o  spoken word  ao lado de uma paleta musical electrónica.  O grupo chamava-se 1 UIK Project e apresentaram o seu disco no Hot Clube Portugal, espaço onde o jazz é rei. No entanto, segundo Kalaf, nem sempre se tirou real partido da história mestiça que Lisboa tem. “Hoje olhamos para trás e vemos que se tivéssemos  tido uma relação mais 
estreita com África e com o Brasil teria sido muito melhor. A certa altura fechámos as nossas fronteiras  e  isso  foi  fatal  na  nossa  relação  com  as  Áfricas,  porque  criaram-se desconfianças e ressentimentos que ainda hoje continuamos a pagar. Já podíamos ter resolvido  os  complexos  que  se têm  uns  com  os  outros.  A  forma  de  resolver  isso  é conversando, dialogando.”