domingo, 1 de março de 2020

Histórias com História - Paulo Nogueira


Da Ponte das Barcas à Ponte D. Luis no Porto

A ponte é uma passagem p'rá outra margem… diz a letra de um tema do grupo portuense, "Jáfumega" e, foi essa necessidade de ligar as duas margens do rio Douro entre a cidade do Porto e Vila Nova de Gaia, uma preocupação constante ao longo dos séculos. Isto para permitir a circulação de pessoas e mercadorias para a margem Sul do rio Douro, no Porto. Ao longo dos tempos houve várias "pontes das barcas", construídas para determinados propósitos, como a rápida circulação de contingentes militares. No entanto, por regra a travessia do Douro era feita com recurso a barcos.
A "Ponte das Barcas", construída com objectivos mais duradouros, foi projectada pelo engenheiro e arquitecto Carlos Amarante (1748-1815), sendo inaugurada a 15 de agosto de 1806. A ponte era constituída essencialmente por vinte barcas, com cerca de mil palmos de extensão, ligadas por cabos de aço, podendo abrir em duas partes para dar passagem ao tráfego fluvial, havendo circulação sobre um passadiço de madeira. Em tempo de cheias a ponte era desmantelada para evitar a sua destruição.
Havia muita concorrência na sua passagem, sobretudo às terças e sábados. Os preços de passagem praticados eram os seguintes:

  • Cada pessoa a pé 5 réis
  • Cada pessoa a cavalo 20 réis
  • Carro de uma junta de bois 40 réis
  • Cadeirinhas de mãos 60 réis
  • Liteira 120 réis
  • Sege 160 réis

À noite, passados 45 minutos do pôr do sol, os preços duplicavam, taxa que se mantinha até 45 minutos antes do nascer do sol, sendo o momento anunciado pelo toque de um sino.
A "Ponte das Barcas" revestiu-se de uma enorme importância para o desenvolvimento das comunicações entre as zonas ribeirinhas, mas também no contexto inter-regional, na ligação entre as margens norte e sul do rio Douro.
Foi também nessa ponte que ocorreu a tristemente célebre "Tragédia da Ponte das Barcas", onde milhares de vítimas pereceram quando fugiam através da ponte à carga das baionetas das tropas da segunda evasão francesa, comandada pelo marechal general Soult, ocorrida em 29 de março de 1809. Morreram nesta tragédia mais de quatro mil pessoas. Reconstruída depois da tragédia, a "Ponte das Barcas" acabaria por ser substituída por uma ponte pênsil em 1843.



A cerimónia de início da construção da "Ponte Pênsil", foi celebrada a 2 de maio de 1841, comemorando o aniversário da coroação da rainha D. Maria II (1819 - 1853), ainda que ficasse conhecida como "Ponte Pênsil". A sua construção terminou em 1842, cerca de dois anos depois do início das obras, sendo oficialmente denominada Ponte D. Maria II.
Disponde de pilares de cantaria com cerca de 18 metros de altura, 170,10 metros de comprimento por 6 de largura, era suportada por 8 cabos (4 de cada lado) constituídos por 220 fios de ferro, transpondo a largura de 155 metros do rio, com um tabuleiro suspenso em madeira para a circulação. Esta ponte assegurava um melhoramento no tráfego entre as duas margens em substituição da antiga e periclitante "Ponte das Barcas". A sua construção foi adjudicada, por ironia do destino, à empresa francesa Claranges Lucotte & Cie, estando inserida no plano de construção da futura estrada que ligaria o Porto a Lisboa. Obras estas integradas no âmbito da política do Presidente do Conselho de Ministros António Maria de Fontes Pereira de Mello (1819 - 1887). Sendo o projecto da autoria do engenheiro Stanislas Bigot, com a colaboração do engenheiro José Vitorino Damásio (1807-1875). Colaboraram durante os trabalhos da sua construção os engenheiros Mellet e Amédée Carruette. Foi inaugurada sem qualquer solenidade a 17 de fevereiro de 1843, durante grandes cheias ocorridas no Douro, que obrigaram a desmontar com urgência a então "Ponte das Barcas". Como curiosidade para testar a sua resistência, suportou mais de 105 toneladas constituídas por cerca de 100 pipas cheias de água. Esta ponte tinha guarnição militar que mantinha e assegurava a ordem, regulamentação, assim como cobrança de portagens para a sua travessia, cerca de 5 e 160 réis, mantendo portanto o mesmo tarifário ainda da "Ponte das Barcas". Por falta de moedas de 5 réis, que embaraçava por vezes o regular serviço de cobranças, fez com que fosse autorizado pela Casa da Moeda, a utilização de senhas de 5 réis, inicialmente de formato quadrado e em metal, no entanto acabaram por vir a ser cunhadas em latão niquelado e de forma redondas. Esta ponte oscilava muito e era pouco segura pelo que, em 1879, foi decidido construir ao lado uma ponte mais moderna e segura. Manteve-se esta ponte no entanto em funcionamento durante mais de 45 anos, até ser substituída pela ponte Luiz I, construída ao seu lado e tendo sido desmontada em 1887. Restam actualmente os pilares e as ruínas da casa da guarda militar, que assegurava a ordem e regulamento da ponte, assim como a cobrança de portagens para a sua travessia. Acresce ainda como curiosidade também, que com o objectivo da reconstrução desta ponte, aproveitando os dois pilares ainda existentes, em 2006 o professor Álvaro Ferreira Marques Azevedo, propôs um projecto desenvolvido pelos alunos da disciplina de "Projeto em Estruturas" da Licenciatura em Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), fazendo contudo o uso de novas tecnologias e materiais. Viria este projecto a nunca ser posto em prática, sendo vencedor no entanto do prémio Secil.


Por volta da segunda metade do séc. XIX, o comércio progredia na cidade do Porto. As fábricas alastravam por todo o bairro oriental da cidade, o então chamado "Bairro Brasileiro", denominação esta por proliferarem habitações de antigos emigrantes ricos vindos do Brasil. O tráfego para Gaia e Lisboa crescia de dia para dia e a bela "Ponte Pênsil" já não chegava para uma circulação eficaz. Por proposta de lei de 11 de fevereiro de 1879, o Governo determinou por ordem de António Maria de Fontes Pereira de Mello, a abertura de um concurso para a construção de uma nova ponte sobre o rio Douro, para substituição da ponte pênsil D. Maria II. Apresentam-se numerosos projectos e propostas de diversos construtores e engenheiros, incluindo o de Gustave Eiffel. Venceu a proposta de uma empresa da Bélgica, a Société Anonyme de Construction e des Ateliers de Willebroeck, no valor de 369,000$000 réis, sendo a obra adjudicada a esta empresa belga, de Bruxelas, pela quantia de 402 contos de réis, com um projecto do engenheiro belga François Gustave Théophile Seyring (1843 - 1923), que anteriormente tinha já colaborado como autor da concepção e chefe da equipa do projecto da ponte ferroviária Maria Pia. Théophile Seyring enquanto sócio de Gustave Eiffel, assina como único responsável a grandiosa e nova ponte, designada Luiz I. Esta nova ponte a localizar-se sobre o rio Douro, entre o morro granítico onde se ergue a Sé Catedral do Porto e a encosta fronteira da Serra do Pilar em Vila Nova de Gaia. Os trabalhos de construção são iniciados no ano de 1881, trata-se de uma ponte com estrutura metálica em ferro forjado, com dois tabuleiros, o superior com cerca de 400 metros de comprimento, suportado por um conjunto de sete pilares e um arco inferior com 172 metros de corda e 45 metros de flecha. Existem cinco pilares metálicos em treliça e dois em alvenaria, o arco, suspende o tabuleiro inferior. A inauguração, apenas do tabuleiro superior, acontece em 31 de outubro de 1886, dia do aniversário do rei D. Luiz I, e a 1 de novembro do mesmo ano, entraria em vigor o sistema de portagens a favor da empresa adjudicatária, sendo o preço de 5 réis para a passagem de peões. Chegou ainda a utilizar-se, como forma de pagamento, um sistema de fichas (moedas) para o efeito, que eram também aceites como moeda em alguns estabelecimentos comerciais. Só mais tarde em 1888, o tabuleiro inferior é inaugurado, entrando assim em total funcionamento. Esta nova ponte de estrutura metálica, é uma verdadeira filigrana de ferro, que passou a ser com a Torre dos Clérigos, o ex - líbris da cidade do Porto, pesava no seu conjunto 3,045 toneladas. A ponte era iluminada por meio de artísticos candeeiros a gás, 24 no tabuleiro superior e 8 no inferior e ainda 8 nos encontros. Devido à ausência do rei D. Luiz I na sua inauguração, a população do Porto decidiu em resposta ao acto de aparente desrespeito, retirar o "Dom" do respectivo nome, ora não parece corresponder à realidade, sendo assim uma lenda. A atestar tal facto, refira-se que nas notícias dos jornais durante o período da sua construção a ponte ser designada por "Ponte Luiz I", assim como outras importantes construções da época tiveram nomes de membros da família real. Acrescente-se ainda que apesar do nome oficial da ponte ser "Luiz I", conforme atestam as inscrições nas placas sobre as entradas do tabuleiro inferior, a população do Porto sempre lhe chamou "Ponte D. Luiz", salvaguardando o título do rei com quem a cidade tinha grande proximidade.



Em 1905 são instalados os primeiros carris dos carros eléctricos do Porto na ponte Luiz I, que levou à abertura de uma passagem em pleno morro da Serra do Pilar, alinhada com o traçado da via que seguia para sul, na época designada Avenida de Campos Henriques. A metade oeste do morro da Serra do Pilar, só seria completamente arrasada em meados de 1927, construindo-se no seu lugar o Jardim do Morro. O serviço de carros eléctricos manteve-se na ponte Luiz I em pleno. A partir de 1913 foi produzida pela administração da ponte uma ficha moeda com o valor de 1/2 centavo, o equivalente aos 5 réis, para pagar as portagens referentes ao cruzamento da ponte nos carros eléctricos, substituindo os anteriores meios de pagamento. A enorme inflação resultante da I Grande Guerra Mundial, fez com que os 1/2 centavos da ponte deixassem rapidamente de ser utilizados e os aumentos acabariam por acontecer. Mas será a partir de 1920 que as portagens serão definitivamente abolidas, contudo só em 1 de janeiro de 1944 é extinto o serviço de portagens na ponte Luiz I. Já no ano de 1954, após obras de remodelação e reparação levadas a cabo pelo engenheiro Edgar Cardoso (1913 - 2000), é extinto o serviço de carros eléctricos, que alegadamente estariam a afectar a estrutura metálica da ponte por corrosão electrolítica, sendo este serviço substituído por troleicarros em 1959, primeiro serviço na cidade do Porto a ser feito por este tipo de veículo e autocarros, isto até meados do final dos anos 70, em que foram retirados do serviço desta ponte. 


Desde 18 de setembro 2005, após obras de renovação, o tabuleiro superior da ponte Luiz I, passa a serviço pedonal e serve a linha amarela do Metro do Porto, passando o tabuleiro inferior a servir para peões e automóveis. À época da sua inauguração, a ponte Luiz I era considerada, como tendo o maior arco do mundo e continua a ser, hoje em dia, o maior dos construídos em ferro forjado.
Em 2012, uma inspeção das Estradas de Portugal concluiu que a ponte precisava de obras de manutenção e reabilitação, nomeadamente ao nível do pavimento, juntas de dilatação, e pintura de vigas e guarda-corpos. Durante o mês de agosto de 2013 deu-se uma «manutenção regular no tabuleiro superior», tendo estado a Linha Amarela do Metro do Porto encerrada entre as estações General Torres e Trindade a partir das 21:30.
Tendo sido este monumento classificado como Património da Humanidade, representa um património valiosíssimo das cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, motivo pela qual a sua adaptação a novas condições funcionais implica cuidados especiais para manter as suas características estéticas e arquitectónicas. São uma presença constante desde à uns anos a esta parte, o fogo de artificio em cascata à meia-noite na ponte Luiz I, considerado um dos melhores do mundo, que faz as delicias de residentes e visitantes de todas as partes do mundo na festa popular de São João. A ponte não é só uma passagem para a outra margem, é também um miradouro de 385 metros, em que o cenário vai mudando gentilmente, a cada passo que se dá.     


Texto:
Paulo Nogueira

Publicação feita ao abrigo do acordo de partilha de conteúdos entre o blogue "Histórias com História" e o site "Cultura e Não Só".