quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Crónica de Viagens - Jorge Santos


O hotel já ficou para trás, a ansiedade aumenta, já fizemos quase 76 kms de estrada. O frio é intenso e gélido, ao longe, bem lá no fundo do horizonte, um risco branco e brilhante desperta a minha curiosidade. Será que estamos a chegar? Olho para o guia, que inclina a cabeça em sinal afirmativo. Chegou o tão esperado momento. À medida que nos aproximamos, fica difícil de explicar o que a minha vista alcança. Ainda custa acreditar que estou finalmente em frente ao imponente Glaciar “Perito Moreno”, em Calafate.

Por momentos, a emoção apodera-se de mim, e não consigo controlar... não sei explicar, tudo aquilo é arrebatador e lembro-me das pessoas que amo. Tenho pena que não possam estar ali a partilhar aquele  momento comigo.

O glaciar Perito Moreno tem cerca de 250 kms quadrados, 5 kms de largura, e a sua parede pode chegar aos 60 metros de altura.

Chego cada vez mais perto através dos muitos passadiços de madeira, construídos para o efeito. É impressionante! ... fico por ali, cerca de 1h10, só observando toda aquela brutalidade de natureza!


Da parte da tarde, entro num barco para observar o glaciar, agora numa outra perspectiva. Incrível, tudo tão perto. É fascinante!...
Blocos de gelo estão constantemente a desprender-se do glaciar caindo com estrondo nas águas gélidas do lago. O barulho é tão grande que pode ser ouvido a mais de 8 kms de distância. 

Chega a hora do almoço e sigo com o meu grupo para um restaurante que fica a cerca de 25 kms do Perito Moreno, ainda dentro do parque dos glaciares. Hoje, infelizmente já não existe.

A cerca de 5 metros da porta do restaurante, ouço uma discussão. Um rapaz na casa dos 27 anos, sentado numa cadeira de rodas, discute com uma mulher. Está muito irritado.

Acompanho o meu grupo ao interior do restaurante, e volto a sair, pois não estava tranquilo com todo aquele aparato.

Com cuidado, e antes que a discussão tomasse outras proporções, aproximo-me e pergunto se posso ajudar de alguma forma. Os dois ficam em silêncio e observam-me de alto a baixo.
Por momentos pergunto-me a mim mesmo:
 - o que estou a fazer ?- Porque me fui meter num assunto que não me diz respeito...

O rapaz olha-me nos olhos e responde:
- Não se passa nada!  voltando à discussão, supostamente com a sua mulher.

Uma vez que estou perto, a discussão é audível e apercebo-me que tal se deve ao facto do jovem querer ir ver um pequeno glaciar que fica por ali perto.

A mulher já em lágrimas, pede-lhe desculpa, mas diz-lhe que não vai conseguir chegar lá...
Começo a olhar para um trilho por entre as árvores, onde se vê uma placa contendo o nome do glaciar “Upsala” e uma pequena seta indicando que a distância são precisamente 100 metros.

Rapidamente percebo o desespero da mulher, pois  o trilho é composto por pequenos galhos de árvores e muita areia... Será praticamente impossível levar a cadeira de rodas por ali.

Naquele instante, revoltado e sem medir os actos e a dificuldade que iria ter pela frente, dou um grito e respondo alto:
Parem!! Eu ajudo-vos... vamos lá ver esse glaciar!! Os dois olham para mim em sinal de concordância, ao mesmo tempo que esboçam um ligeiro sorriso ainda surpreendidos.

Volto ao restaurante e informo o meu grupo para não sair após a refeição pois tenho que tratar de um assunto e posso ter que demorar um pouco mais. O grupo compreende, sem ter necessidade de explicar o que ia fazer.

De volta, pergunto ao rapaz como se chama, ao que me responde, Diego...
Em tom de brincadeira, digo-lhe: Como Diego Maradona ? tens nome de génio do futebol, como tal, vais ter que me ajudar, pois não vai ser fácil chegarmos até lá, e sozinho não consigo!

Os primeiros metros do trilho confirmam o que já esperava, a cadeira teima em se enterrar na areia tornando-se praticamente impossível de circular. Não desisto e continuo empurrando a cadeira, que aos poucos vai escorregando naquela maldita areia. Porque não construíram um passadiço naquele lugar ?!

Vamos falando e o Diego começa a contar-me a sua história... Vive em Buenos Aires e foi propositadamente com a sua esposa a Calafate, para ver o Upsala. Está na faculdade e estuda a biodiversidade, logo aquele é um dos grandes momentos da sua vida!

Estudou imenso sobre o glaciar e todas as poupanças, da sua ainda curta vida, foram para aquela viagem. Daí aquela discussão...


Conta-me que aos 18 anos foi atropelado por um condutor alcoolizado, ficando paraplégico da cintura para baixo. Mais revoltado fico e vou buscar força onde já não tenho. Andamos cerca de 1 hora para fazer 70 a 80 metros... já não aguento mais mas juro a mim mesmo que ele vai ver a “porra” daquele maldito Glaciar, de por onde der...

Olho para a esposa, que tal como eu escorre suor em bica. É curioso se considerarmos que a temperatura actual é de - 3 graus. Imaginem…

De repente, começamos a ouvir água. Estávamos finalmente a chegar e os olhos do Diego brilhavam. Abraçamo-nos os 3 em sinal de vitória. Os meus braços estavam inchados do esforço e as veias pareciam querer saltar dos braços mas valeu o esforço!

Ficamos por ali uns 20 minutos, contemplando o glaciar... falamos de tudo e de nada, sorrimos e até nos comovemos com a sua história de vida e superação. Tão jovem o Diego, só tinha 25 anos...

Foi tanta a alegria e emoção mas tinha o regresso para fazer e um grupo à minha espera. A Saga ia começar outra vez mas antes fui a correr ao restaurante explicar o que se estava a passar e uma vez mais toda a gente entendeu. Voltei para junto deles, e comecei novamente metro a metro a empurrar a cadeira de rodas com toda força que tinha.

De repente vejo um cliente, depois outro e ainda mais outro que vinham ajudar. Confesso que fiquei comovido com tão bonito gesto. Afinal estamos a falar de um grupo, com uma faixa etária já considerável e não aconselhável fazer grandes esforços. Mas naquele momento, nada disso interessou. O importante era ajudar o Diego e a sua esposa a regressar ao ponto de partida, com a consciência que ele tinha tido um dia feliz... apenas isso.

Curioso, foi quando chegamos quase ao restaurante e tínhamos o restante grupo a bater palmas e a motivar-nos para os últimos metros.

Se o Perito Moreno tinha sido até ali o ponto alto da nossa viagem, rapidamente passou para segundo plano. Pois para mim, aquele foi um momento que vou guardar para sempre na minha vida.

No fim, o Diego vira-se para mim é diz-me em tom de brincadeira: - bem agora já me posso levantar e obrigado a todos ...
Todos demos uma enorme gargalhada! Seja como for, com a força dos braços e da esposa, levantou-se um pouco para me abraçar e agradecer! Por amor de Deus, agradecer Diego?!

Nós é que agradecemos o teu sorriso, a tua superação e força de viver... obrigado amigo!

Ainda hoje escrevo com o Diego e jamais irei esquecer aquele dia em Calafate... que me ajudou, até hoje, a relativizar muita coisa na vida!

Hoje mais que falar de um destino, quis que conhecessem o meu amigo Diego e mostrar-vos que uma viagem é também vivência, experiência e é por isso que dizem que é a única coisa na vida que compramos e nos torna mais ricos!

Até para a semana, aí algures no Mundo.

Apresentação Jorge Santos

O meu nome é Jorge Santos, tenho 48 anos e trabalho na Agência Abreu há mais de 33 anos. A minha paixão é a família, e o Mundo, afinal de contas a minha verdadeira casa ao longo dos tempos. Como coordenador nacional dos grupos de lazer da Abreu, acompanho inúmeros clientes por esse mundo fora, assim como construção de viagens à medida e respectivas viagens de inspecção.

O que vou tentar transmitir através de alguns artigos, são simplesmente sentimentos e experiências vividas na primeira pessoa, e não falar tanto da vertente organizativa da viagem em si.