Aisha é uma menina muito pequenininha, muito pretinha e muito agitadinha. É, também, dona de um sorriso capaz de iluminar cada canto ao seu redor. Não à toa seu nome, em banto, quer dizer “vida”. Ela enche de sol a rotina da família, naquela pequena casa sempre muito iluminada pelo afeto. Quer dizer... Até aquele dia. Quando aconteceu de o sol não aparecer mais. Naquela tarde, Aisha ficou esperando o pai chegar, como sempre. Só que ele não chegou nunca. Justo ele, que nunca se atrasava.
A menina, então, foi vendo os membros de sua família irem se apagando e virando sombra, um a um. Só mesmo a sabedoria herdada de seus ancestrais, com o apreço pela luz e pelas palavras, poderia tirar a menina daquela enrascada. Para isso, ela precisou lançar mão da estratégia que une o poder da memória coletiva e a valorização da negritude. O enlace entre afeto, responsabilidade e poder de se reencantar — e de se reiluminar — pela vida em comum.
A filosofia kindezi, do povo bantu, explica que cada pessoa nasce com um sol interno. Mas cabe a toda a comunidade acendê-lo: atiçar o resplendor que nos ilumina a todos. “Eu sou porque Nós somos”: é dessa filosofia pulsante na África Oriental que nasceu a frase, usada por pensadores brasileiros contemporâneos.
Apesar de beber na fonte do pensamento gerado na região Congo-Angola, A luz de Aisha é um livro que fala diretamente aos brasileiros. Somos o país mais negro fora do continente africano. A maioria de nossas meninas e meninos tem origem afrodiaspórica. E, dentre estes, há ainda outra maioria: a de crianças que perderam parentes próximos para o genocídio negro ainda em curso no Brasil.
Com muita delicadeza, exuberância e empatia, as autoras de A luz de Aisha ousam transformar essa história de dor, tão corriqueira, numa história que põe criatividade e afeto em primeiro plano. Na contramão das narrativas de superação, tão comuns em nossos tempos, esta obra não procura estimular a busca individual por força e coragem. Em vez disso, tece um elogio ao encantamento e à alegria como dons só alcançáveis pelo nutrir coletivo: “Eu sou porque Nós somos”, afinal.
A luz de Aisha é o livro de estreia no universo infantil de duas mulheres que já são consagradas em outras áreas das artes e do pensamento: a compositora e percussionista Luana Rodrigues e a filósofa e multiartista Aza Njeri. Ambas são, também, figuras importantes nas reflexões sobre negritude no Brasil contemporâneo. Como destaca a artista e arte-educadora Verônica Bonfim, no prefácio: “Neste belíssimo texto, podemos encontrar referências preciosas para a criação de subjetividades e representatividades positivas, que expressam a diversidade e pluralidade dos povos negros”, diz ela. Trata-se de um livro que “assopra vida na população afrodescendente, cuja maioria das crianças não consegue chegar à adolescência, porque tem suas vidas, famílias e sonhos interrompidos por um genocídio negro em curso há séculos. Uma obra que, sobretudo, nos ensina que é preciso provocar ventania nas nuvens brancas que pairam sobre essa população, para que o sol de cada um possa ser aceso e iluminar!”
Para completar, na quarta capa, há um texto encantador, escrito pelo grande cantor e compositor Emicida, que, ao se recordar de um ditado africano, endossa a sabedoria que transborda de A luz de Aisha:
A última vez que estive na África do Sul, tive a oportunidade de ir bem longe, quase a Moçambique, lá pros lados de uma província chamada Mpumalanga. Ali eu aprendi um ditado muito bonito que dizia: “Não importa o quão densa seja a escuridão da noite, depois dela sempre vem um belo sol.” Quando leio a história de Aisha, me vem esse ditado à cabeça. Ela, com suas palavras mágicas, reconstrói o caminho para que, em todos nós, o Sol possa nascer de novo!
O lançamento de A luz de Aisha marca a chegada da Editora Rebuliço ao mercado. A nova casa editorial é formada por um time de quatro mulheres – Aline Haluch, Ângela Costa, Eliane Santos, Laura van Boekel –, todas elas profissionais já experientes no ramo dos livros. Sua proposta é publicar obras que possam provocar questionamentos, reinventar atitudes, movimentar consciências em prol da empatia, da justiça social, do respeito às diferenças e da constante (re) construção das subjetividades. Não à toa, a história criada por Aza Njeri e Luana Rodrigues, e ilustrada por Gabriel Ben, é seu primeiro lançamento.
À venda em Lisboa na Livraria da Travessa no Príncipe Real